“A filosofia serve para entristecer”, diria Deleuze, em uma de suas respostas ácidas sobre a utilidade da filosofia.

Quando, recentemente, fiz esta pergunta aos meus alunos, notei um certo padrão: homens atléticos (e alguns que desejam se tornar, efetivamente, atletas profissionais) têm um particular desdém pela filosofia. Juram de pé junto que nada na matéria lhes contribui. Não a utilizam e nem a utilizarão em suas vidas. Outras matérias escolares tampouco, mas a filosofia é mais inútil do que as outras.

Em partes, certamente não gostam dela, pois não gostam de mim. Sou na visão deles um carrasco, pois lhes cobro atenção, foco, que desliguem seus malditos celulares e prestem atenção em alguma coisa, além de sua região pélvica e, já que sou, na visão deles, o arauto desta disciplina, não posso trazer boas mensagens deste vil reino.

Pelo perfil atlético, no Brasil quase sempre ligado ao futebol, não pude deixar de comentar sobre a recente condenação de Daniel Alves por estupro na Espanha. Em que pese concordarem que Daniel Alves está errado, outros jogadores e figuras do futebol, como Neymar, Cuca e Robinho não possuem o mesmo tratamento. Acredito que largamente pela imediatidade da condenação.

Enfim, mesmo com estes vários casos de violência à mulher, especificamente (para não falarmos de outras posturas questionáveis de atletas profissionais), estes alunos julgavam totalmente inútil a filosofia em suas vidas, e ela tampouco contribuiria em relação a problemas como este. Neymar, em específico, para muitos jovens aqui na Baixada Santista é totalmente ilibado e está acima de toda crítica. Lembro-me de um texto do El País, em 2019 (https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/07/deportes/1559943832_444604.html), antes da retirada da redação do Brasil, em que, enfrentando mais uma das muitas denúncias, o conservadorismo continuava a passar mão na cabeça de um adulto de (então) 27 anos, justificando suas ações equivocadas na pouca idade. Quisera eu, que tenho o azar de ter a mesma idade do referido “atleta”, ter o mesmo tratamento quando faço coisas erradas, diga-se de passagem, nenhuma com tanta gravidade como ele.

Importante notar também, neste caso, um texto citado na reportagem do El País (https://medium.com/sem-firulas/neymar-e-o-pre%C3%A7o-de-ser-adulto-sem-nunca-ter-sido-crian%C3%A7a-e7d4f6615d91), em que levanta questionamentos justamente sobre Neymar e outros jovens que são obrigados a abandonar a própria juventude para tentar viver do esporte, sendo obrigado a pular etapas de maturação humana. A promessa, quase sempre, não é nem tanto viver de algo que se ama, mas alcançar a riqueza de atletas de nível global. Riqueza essa, aliás, concretiza todo o discurso tosco da meritocracia, mas não chega nem aos pés dos grandes herdeiros bilionários do mundo.

Em maior ou menor grau, a infantilização de atletas e aspirantes a atletas é normal entre homens no geral – cuja vida atlética quase sempre é perpassada como possibilidade, seja pelo amor construído pelo esporte, seja pelas possibilidades de ascensão social ou ambos. Para citar novamente um caso em relação aos alunos, me lembro, uma vez, de ficar chocado ao lecionar para uma sala de 3º Ano do Ensino Médio, provavelmente já com adultos dentro dela, em que os homens brincavam de dar socos e tapas nos pênis uns dos outros. Brincadeiras do tipo geralmente vêm acompanhadas, na internet, do comentário que as coloca como típicas de alunos de 5º ano do Ensino Fundamental, quando têm geralmente entre 9 ou 10 anos. No que pese já aí ser um tanto questionável uma brincadeira fálica que tem por objetivo aplicar pressão sobre uma região um tanto quanto sensível, é mais compreensível com legítimas crianças que ainda estão compreendendo seus corpos. Com adolescentes e adultos, cuja compreensão do pênis já está desenvolvida o bastante, é alarmante.

Alan Moore, um dos grandes roteiristas de quadrinho do mundo, já disse, por diversas vezes (https://br.ign.com/alan-moore/103058/news/alan-moore-critica-adultos-que-gostam-filmes-herois-precursores-do-fascismo), como o profundo interesse pelas histórias de super-heróis é um traço preocupante da infantilização da humanidade. Não é de surpreender que a maioria do público consumidor destas histórias que hoje tomaram de assalto o cinema mundial são homens. Eu mesmo o era, até dar o braço a torcer e assistir “2001: uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, e, finalmente, ter desfrutado de uma verdadeira experiência cinematográfica. É também do quadrinista referido aquela que, talvez, seja a maior sátira ao mundo dos super-heróis de quadrinhos; “Watchmen”. O mesmo público masculino e infantil é incapaz, por exemplo, de perceber os traços fascistas de seus protagonistas, alçando o maior deles a símbolo de luta pela justiça, o detetive Rorschach.

Ontem descobri algo que desejo do fundo de minha alma ser uma esquete muitíssimo bem elaborada que me enganou completamente: a existência de “super-heróis” no Rio de Janeiro. O leitor poderá ter o desgosto se pesquisar por “Gato da Cidade”, e tenho certeza que terá o mesmo desejo de negar a existência daquilo como fato, esperando que se trate de algum conteúdo humorístico muito bem produzido. Devo comentar que todos os “heróis” fluminenses são homens?

E será que o leitor deseja ser lembrado que Neymar tem uma tatuagem dele mesmo fantasiado, metade de Batman e a outra metade de Coringa, seu arquirrival?

Como dito inicialmente, Deleuze dirá que a filosofia deve entristecer. Queria eu dizer aos meus alunos que essa postura infantilóide de atletas e aspirantes a atletas, e homens no geral, é mais um problema do mundo capitalista que vivemos e traz resultados extremamente nocivos, não só para eles mas para todos nós. Todos os atletas citados nominalmente aqui são profundamente conservadores, apoiadores do genocida que ainda ronda o Brasil como um espírito cuja passagem ao inferno não foi, infelizmente, consumada. Queria eu deixá-los tristes. Mas não me escutariam, pois a filosofia é inútil.

Eu, homem, com a barba grisalhando, fui hoje trabalhar com uma camisa dos Cavaleiros do Zodíaco.

Autoria
Júlio César Rodrigues da Costa é Mestre em Filosofia pela UNESP, Professor da rede estadual do Estado de São Paulo e colaborador do CCN Notícias.
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