Quando conversei com o Editor do CCN Notícias, Sérgio dos Santos, sobre meu último texto e comentários de algumas pessoas sobre ele, um tipo é esperado já que frequentemente o ouço, quando digo que os problemas da escola e da educação não se resolvem dentro dos muros desta instituição. Qual comentário? “Como pode um professor dizer algo assim?”.
Faço sempre um esforço tremendo para não parecer irônico e evitar responder com outra pergunta: como pode um professor ainda achar que a educação muda somente dentro da sala de aula?
Quando digo que estes comentários partem ainda de uma visão romântica da escola, me lembro de textos lidos durante minha graduação e de como se via na educação, no período pós-ditadura, a ferramenta para solucionar grande parte dos problemas brasileiros. Mais de 30 anos depois, cá estamos patinando num sistema fracassado.
Primeiro, que considero esta aposta, no fim da ditadura militar, já um grande erro, que desconhece, se me parece, o próprio histórico da educação formal; nem mesmo Paulo Freire, sempre reivindicado nessas horas, considerava a educação como condição suficiente para transformar a sociedade. Após a Revolução Francesa, a tarefa pedagógica foi transferida da Igreja para essa “nova” instituição (de certo já havia ambiente de aprendizado, especialmente universidades, mas fora padronizada factualmente neste momento), passando das mãos do clero para o Estado, controlado pela burguesia.
No Brasil em específico, até o século XX era muito clara a forma como essa educação “universal” controlada pela burguesia agia: todos estudavam durante os primeiros anos da educação, e depois, no ginásio e mais especialmente ainda no ensino médio, os filhos da classe trabalhadora eram “expulsos” através dos exames admissionais (tais quais os atuais vestibulares universitários, cujo fim é o mesmo), resultando numa educação aprofundada apenas para os filhos das classes dominantes. Com o tempo e com luta, houve uma tentativa de equiparação do ensino básico, de forma que todo jovem brasileiro, agora, curse até o ensino médio, sem nenhum tipo de prova ou qualquer instrumento que o exclua. Este foi então relegado, como dito anteriormente, para o ensino universitário, que passou a ter este papel de manter um aprofundamento científico e cultural apenas às classes dominantes. Ainda são muito recentes os resultados das cotas – e o ataque às políticas de permanência estudantil para estudantes universitários pobres dificulta ainda mais que estes resultados se solidifiquem.
Agora, vejamos algo que a filosofia possa tratar em relação a isso. O filósofo franco-argelino Althusser escreveu, dentre outras coisas, sobre o Aparelho Repressivo do Estado e os Aparelhos Ideológicos do Estado. Ambos têm como função produzir e reproduzir a sociedade capitalista, ou seja, a divisão de classes sociais entre burguesia e proletariado; o Aparelho Repressivo do Estado o faz através, primordialmente, da força e da violência: são as leis, o poder judiciário, as polícias, as prisões, etc., e são, para o filósofo, todo um só grande Aparelho. Os Aparelhos Ideológicos do Estado mantêm a sociedade de classes através, como diz o próprio nome, da ideologia: são as escolas, as igrejas e templos religiosos, a imprensa, a arte, etc., cujos valores e conteúdos, são majoritariamente em favor da classe dominante. Basta ao leitor pensar no primeiro filme hollywoodiano que venha a cabeça e verá como isso acontece. Para finalizar esta breve explicação, ambos os Aparelhos agem com violência e ambos propagam uma determinada ideologia: as leis também “ensinam”, a escola também “pune”, mas são tarefas secundárias de cada Aparelho.
Para Althusser a escola não é só um dos Aparelhos Ideológicos do Estado, mas o principal deles, o grande mantenedor das ideias da classe dominante. Penso que, no Brasil, estamos num momento ímpar para termos clareza disso. O que é o Novo Ensino Médio – e diga-se de passagem que o governo federal atual, na sua política de conciliação de classe, não pode revogá-lo como deveria, serviu apenas para deter a revolta dos trabalhadores da educação e dos estudantes – senão um grande projeto de manutenção do poder da classe dominante?
Utilizarei especialmente o maior exemplo patético desta reforma e de todo o debate sobre sua aparente necessidade: a entrada despudorada da discussão sobre “empreendedorismo” na educação, frequentemente com uma disciplina específica para tal. Byung-Chul Han, em sua obra mais famosa “A sociedade do cansaço”, afirma como alteramos de certa maneira o modo de produção atualmente: antes, o trabalhador tinha sempre a figura de um vigia exterior, cuja função era também de capataz, para o manter na rédea e produzir bem; já hoje, essa figura não é mais um outro, mas si mesmo: a cobrança vem do próprio sujeito para exercer bem sua função, para buscar formações mais aprofundadas em relação ao seu trabalho, para “empreender” bem, etc.
Alguém acha que a disciplina de empreendedorismo formará alunos de ensino médio público aptos a abrir empresas bem sucedidas? E mesmo se fosse esse o caso, por acaso isso seria bom para acabar com uma sociedade de classes como a nossa? Esta disciplina de nada mais serve além de inculcar nos jovens essa mudança que Byung-Chul Han identifica no mundo atual: a iniciativa do trabalho e da “melhoria” das condições de trabalho deve partir do próprio trabalhador, não do supervisor “capataz”; o trabalhador deve se “autoexplorar”, ao invés de “esperar” a exploração vindo de um superior hierárquico. Aqui a reforma do ensino médio serve muito bem à burguesia.
O que dizer então da diminuição acachapante das já anteriormente poucas aulas de filosofia e sociologia? Hoje, a maioria dos meus alunos tem um terço da carga horária de filosofia do que tinham antes desta reforma nefasta. Espera-se de mim, com minhas uma hora e quarenta minutos de aulas semanais, construir realmente nos alunos as condições de um pensamento filosófico e crítico sobre o mundo? Quem ainda acha isso, basta procurar no repositório do Centro de Mídias do Estado de São Paulo quais deveriam ser as aulas ministradas por mim.
Então, de fato, não considero que o trabalho docente resolverá os problemas da educação. Esta é uma visão ultrapassada, e se houve um momento em que apostar na educação formal foi plausível, hoje não é mais. Tampouco confio que o Estado solucionará o problema, tendo em vista que desde o momento em que “surgiu” a educação formal nos moldes atuais, serve a quem controla o Estado, a burguesia.
Terminarei com uma breve história: Juan Carlos Mechoso, recém-falecido histórico anarquista uruguaio, guerrilheiro, sindicalista e teórico, aprendeu a ler lendo panfletos sindicais e de partidos revolucionários. Quase não frequentou a escola.