Retomo a crítica à Reforma Administrativa (PEC 32/2020) destacando um dos aspectos que melhor sintetizam como se trata de uma cilada: o ataque à estabilidade de servidores públicos. Entre defensores da “modernização” do Estado – lembrando, novamente, que “modernização”, no jargão liberal, equivale a “precarização” – é o reiterado apontamento de que a estabilidade configuraria, simplesmente, um instrumento de “privilégio”.

Podemos elencar dois argumentos recorrentes que visam justificar essa posição: 1) servidores públicos seriam “privilegiados” por contar com uma proteção do trabalho que não mais encontra paralelo no setor privado; 2) a estabilidade só faria “acomodar” os servidores públicos, que, uma vez garantidos no trabalho e sem possibilidades de demissão, não teriam incentivo para prestar seus serviços de maneira eficiente.

Primeiramente, é necessário desmistificar um equívoco comum: ao contrário do que se pensa, servidores públicos podem, sim, perder seus cargos. Para tal, é preciso que haja comprovação de crime e o trabalhador enfrenta um processo administrativo, que pode resultar em sua exoneração. Sentença judicial transitada em julgado – ou seja, que não mais admite recurso – também é uma forma de ocasionar perda de cargo. Em segundo lugar, vale destacar a existência de particularidades nos setores público e privado – particularidades que, frequentemente, são ignoradas mesmo pelo próprio funcionalismo público.

A lógica do serviço público não deve, simplesmente, ser equiparada à mentalidade do mercado, cujo objetivo final é a obtenção de lucro. Embora o Estado também assuma papel de patrão – afinal, servidores públicos não deixam de ser trabalhadores vendendo sua força de trabalho para suprir suas condições materiais de existência –, o serviço público se volta para o atendimento da população – por exemplo, em segmentos como a educação e a saúde.

Um aspecto fundamental a se considerar é que a estabilidade configura um instrumento para garantir que o trabalhador e a trabalhadora concursados possam desempenhar suas funções sem sofrer constrangimentos ou pressões de ordem política. Consideremos: embora o Estado constitua um ente mais duradouro, os governos podem ser substituíveis periodicamente a partir do processo eleitoral. Seria viável alterar todo o corpo de funcionários devido à eleição de determinado candidato? E se o servidor possui atuação política que se distingue da do governante de plantão?

Se a corrupção representa um sério problema em um Estado submetido a agentes que, no limite, procuram atender aos interesses daqueles que detêm o poder econômico, não é o fim da estabilidade que vai resolvê-la. Pelo contrário: a estabilidade é uma ferramenta que protege servidores públicos ante irregularidades praticadas por demais agentes. Um exemplo prático: em 2012, Jair Bolsonaro foi multado em R$ 10 mil por um fiscal do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) por praticar pesca ilegal. Nos primeiros meses de 2019, o Ibama, submetido ao Ministério do Meio Ambiente, exonerou, do cargo de chefia, o servidor que multou Bolsonaro anos antes. Coincidência? Se o servidor não possuísse estabilidade, sem dúvidas os riscos de demissão sumária seriam críveis.

Portanto, fica evidente que a estabilidade não se trata de mero privilégio de trabalhadores do setor público em comparação aos do setor privado, mas uma ferramenta necessária para o próprio desempenho da função e mesmo para a garantia de continuidade dos atendimentos à população – sem depender, simplesmente, dos anseios de governantes de plantão.Rechaçar os ataques a trabalhadores e trabalhadoras dos serviços públicos é fundamental. A Reforma Administrativa, na prática, tem como propósito tornar os serviços públicos ainda mais frágeis diante das aspirações de representantes do setor privado. No dia 18 de agosto, servidores públicos de diferentes categorias realizaram uma paralisação nacional contra a PEC 32/2020. É só o começo de uma luta que promete ser longa e primordial.

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Autoria
André Fernandes - Professor de escola pública, mestre e graduado em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Um inconformado convicto.
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