No começo, eram apenas três. Comecemos pelo pássaro de asas vermelhas, que surgiu como uma fênix do descaso cruel e natural que se seguiu à juventude, quando o tempo veio sorrateiro indicar aos pais que era hora de o filho voar em abandono. Pois é da formação substancial dos filhos, ainda que se amargue uma única vez a vida, o desabrigado sentimento da liberdade. Ele voou ainda jovem ao mundo que, no mínimo, queimou suas patas no asfalto urbano e lhe enganou o céu nos prédios espelhados. E em seus jovens anos de energia progressista, cresceu nele a repulsa pelos criadores da massa cinzenta do mundo; irritava-o muito o fato de ter de procurar o solo terroso e nele esperar um milagroso banquete de grãos, minhocas ou restos de alimentos industrializados. Pior era o fato de não ter mãos que pudesse usar, pois desejava escrever um livro que mostrasse ao mundo dos pássaros a sua fúria. Foi quando repousava num fio telefônico que apareceu a pomba de óculos redondos, e então o dia mudou.

A pequena pomba, acinzentada como o resto da cidade, de imediato percebeu no pássaro vermelho a fagulha necessária para a violência que cultivava dormente sob as lentes redondas dos óculos, ainda, sob os olhos que tinham visto, há algum tempo, sua pombinha, companheira de telhado, terrivelmente assassinada por sádicos meninos maus. A estilingada fora certeira, e, por um triz, também o teriam levado. Lá embaixo, no solo da praça, as risadas das crianças ainda ressoavam em sua pequenina cabeça obstinada. Bastou ver para enxergar: era aquele pássaro de asas carmins o seu escolhido, e, juntos, fariam a insurreição das penas do mundo!

Foram em companhia buscar num jardim enjeitado a calopsita calva que escondia as falhas da cabeça com os fios de seu loiro topete. Jovem, porém experiente, ele havia se revoltado contra seus antigos donos: arrombara a grade da gaiola e voara para longe, até cair exausto no quintal de uma casa abandonada. Lá, certo dia, expulsara um casal de pombos que ali resolveu namorar. Sua força solitária encantou o pombo macho de óculos redondos que estranhamente recordou aquele jardim, tempos depois, pousado num fio telefônico.

Assim se formou a Convenção dos Pássaros, num amanhecer de março de um ano quente. À medida que os minutos passavam, os pios cresciam e atraíam cada vez mais indivíduos de sua classe animal. Os pardais, ociosos, se fizeram aos montes, e o fio envergava numa meia lua feliz. O pássaro vermelho, flanqueado pelos dois repentinos e fiéis camaradas, esgoelou ferozes discursos sobre como os seres humanos haviam traído a ordem harmônica das coisas, e como a fome assolava os pobres e penosos operários bicudos. Que, enquanto se esforçavam na árdua sobrevivência, oprimidos pela vida, os homens cozinhavam os frangos e aprisionavam os irmãos de mais belas plumagens; que assassinavam ao bel-prazer cômico os pardais e as pombinhas dos telhados das casas. Que era o tempo do basta, e que era dever de todos a defesa da classe alada, bicuda, e que, juntos, num só corpo, sob o mesmo piado, fariam a revolução das bestas voadoras; o mundo haveria de se render aos que do céu trariam o juízo final, a justiça implacável, ao passo que não sobraria no mundo bípede pensante, pois não correriam o risco de uma retaliação organizada, uma vez que os homens só eram perigosos quando aos montes. Piavam alto, em ensurdecedores aplausos sonoros.

Continuou, o vermelho, num pio-pio-pio que dizia ser aquele o levante armado de bicos. A Revolta das Penas, como resolveram chamar, tomava volumoso corpo a cada camarada que se juntava à causa. Um pequeno beija-flor que resolveu pedir cautela foi rapidamente, em nome do bem-comum, depenado e caiu inerte no chão quente aquecido pelo sol da manhã. Não havia retorno. “Era a hora!”, ralhou a calopsita. O pombo de óculos redondos se limitava a sorrir lacrimejante perante aquele antigo sonho que se tornava realidade. Era o caos que necessitava ao seu mundo vazio e inerte. O fio telefônico vibrava em ondas revigorantes o piar férvido daquele bando de pássaros. Os telhados tomaram a cor dos pardais comuns, e no solo o sol estalava o corpo do traidor nu enjeitado; a manhã rubra do março caloroso efervescia em pios revolucionários; o desalinho tomou conta daquela rebelião desarmônica e via-se o fulgor folião nos olhos da massa insurgente.

Aí, no gatilho lépido daquele motim, uma bomba estourou, e os pios clamaram “revolução! Revolução”; outros perceberam a gravidade do estrondo e aflitos piaram “represália! Represália! A guerra estourou!”, e voaram desertores, traidores, em frente aos olhos alucinados do pássaro vermelho que procurou ao lado os seus fiéis defensores, mas nada encontrou no espaço de fio telefônico. No alto voava o pombo que então havia perdido os óculos redondos, e no chão cozinhava no calor do concreto a desfalecida calopsita estupefata. Voou da janela em frente à conferência uma segunda biribinha, estalinho, bombinha de festa junina, e estourou polvorosa no poste próximo da Convenção dos Pássaros que, assim, teve seu fim decretado pelo abandono geral e imediato dos irmãos integrantes, vanguardistas, unidos sob mesma bandeira, e que impedia um homem comum de dormir durante a manhã de uma quinta-feira de um ano quente, fumegante e inabalável.

Autoria
Matheus Zucato é mineiro, autor dos livros “Os Dois Fazendeiros” (Autografia, 2018) e “Realidades Rompidas” (Edição do autor, 2021). Participa de antologias de contos e mantém crônicas mensais publicadas em jornais de São Paulo e Minas, desde 2018. Vencedor do I Concurso de Contos de Iguaba Grande (AACLIG, RJ), em 2019. Recebeu menção honrosa no VIII Concurso Literário da Academia Penedense de Letras (APLACC, AL), em 2022 e foi segundo lugar no VII Concurso Literário da Academia Leopoldinense de Letras (ALLA, MG), também em 2022. É colaborador do CCN Notícias.
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