A teoria dos privilégios está em alta nos tempos atuais e o principal sinal de sua aceitação é o fato de que ela é, usualmente, empregada para descrever formas restritas pelas quais grupos específicos podem acessar bens, riqueza e prestígio ao passo que a outros, tais elementos são distribuídos à conta gotas, quando muito. A maneira pela qual esse arsenal teórico está sendo empregado é problemática, justamente por não ajudar a entender a natureza específica dos fenômenos que pretende descrever, ao tempo que dá pretensas tonalidades progressistas ao neoliberalismo.
Aqui vai uma pergunta importante: quem é o tipo de pessoa que é despossuída de quaisquer tipos de privilégios? Se você ler jornais burgueses, os servidores públicos de baixo escalão são “privilegiados”, afinal, o tipo de precariedade encontrada em ampla parte da classe trabalhadora ainda não é tão comum entre eles. Recentemente, vi um internauta afirmar que, vejam bem, ter registro fotográfico de infância é privilégio. Ter educação sólida é privilégio. A lista de “privilégios” é longa e conhecida. E a conclusão é sinistra: apenas a pessoa submetida a superexploração do trabalho, desprovida de quaisquer tipos de direito, situada fora das proteções oferecidas pelo governo não será acusada de ser “privilegiada”.
É aqui que encontramos o casamento entre a teoria dos privilégios e neoliberalismo: não se trata do fim da exploração do homem pelo homem ou da abolição de opressões estruturais, mas de uma degradação generalizada da condição humana. Em Morte e Vida Severina, Severino tem dificuldades para se apresentar ao leitor, afinal ele e os outros Severinos são iguais em tudo na vida, compartilhando inclusive a “morte severina/ que é a morte de que se morre/de velhice antes dos trinta/de fome um pouco por dia”. Neste nível de indiferenciação entre diferentes indivíduos, já não há mais privilégios.
Ao invés de denunciar ataques às conquistas da classe trabalhadora e de grupos antirracistas e feministas, a teoria dos privilégios as questiona a partir da constatação de que elas ainda não foram universalizadas. É daí que uma criança que só brincou durante a infância possa ser considerada “privilegiada” se comparada com outra, forçada a trabalhar desde os 7 anos. É a naturalização da vida severina.
Por fim, o capitalismo é um sistema baseado na desigualdade, que assume tonalidades raciais, graças ao casamento entre o capital e o supremacismo branco. Neste sentido, a distribuição de riquezas, bens e prestígio é designada para poucos e isso é norma. Considerar a concentração de riquezas como um mero desvio ilegítimo da norma (privilégio) tira a questão sistêmica do horizonte: o problema é o modo de produção capitalista.
E é esta perspectiva sistêmica que precisamos ter em mente para superar desigualdades e hierarquias que a teoria dos privilégios, na melhor das hipóteses, é capaz de detectar.
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