Quando eu estava na graduação, a seção de História Antiga do departamento de História era composta por dois professores negros, sendo que um deles era arqueólogo especializado em Grécia Antiga. Essa situação bastante inusual causava surpresa entre os estudantes. Em contraste, a seção de História da África era composta por duas professoras negras, mas isso era encarado com alguma naturalidade.

A surpresa e a naturalidade não faziam parte de uma cultura universitária típica da instituição onde eu estudei, mas da expectativa de que intelectuais negros ocupassem certos locais a eles delimitados: falar sobre si mesmo, discutir sobre racismo antinegro e temas afins.

Em larga medida, a produção feita a partir deste lugar é informada tanto por preocupações acadêmicas quanto pela interlocução com movimentos subalternos. Mas é justamente a partir da noção de que a produção acadêmica é feita na torre de marfim, longe da influência da militância política, que se tenta diminuir o mérito desta produção. Ao mesmo tempo, há uma certa desconfiança, pode-se falar até em recusa, dos desafios epistemológicos postos por movimentos antirracistas.   

Entre historiadores pode até haver o reconhecimento de que o racismo é uma estrutura, mas ainda assim ele é tratado como um tema específico, típico do local esperado que acadêmicos negros ocupem. É isso que explica o surgimento da estranha categoria dos “especialistas em racismo”.

A título de comparação, vejamos como outra estrutura fundamental no mundo contemporâneo é tratada: o capitalismo. O reconhecimento do caráter estrutural dele tem algumas consequências básicas: a partir do processo de transformação do capitalismo em uma estrutura de caráter global, toda história deste período é uma história do capitalismo. Por causa disso, existem especialistas em aspectos específicos deste modo de produção, como a sua relação com a escravidão, por exemplo.

Portanto, o local no qual há expectativa de que intelectuais negros ocupem existe, ao menos em parte, justamente pela negação do caráter estrutural do racismo. Sejamos claro: se o racismo é estrutural, então toda história desde que ele se tornou estrutura é, em maior ou menor grau, uma história do racismo.

Não há surpresa nesse movimento de redução da racialização das relações sociais a mero tema, afinal, o reconhecimento do caráter estrutural dela tem como consequência básica a necessidade de superar o eurocentrismo, uma ampla reordenação do quadro epistemológico.

É necessário ter intelectuais subalternos ocupando todos os espaços possíveis, mas é igualmente importante que se reconheça os problemas epistemológicos que as ciências humanas possuem ainda hoje, de maneira a superá-los. Naturalmente, esse processo não ocorrerá apenas na academia, mas será expressão da luta política dos subalternos.

Autoria
Samuel Rocha - Graduado em História pela UNIFESP. Tem mestrado em História Social pela mesma instituição. É professor da rede municipal de São Paulo.
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