Um dos meus professores na Universidade fazia uma diferenciação na filosofia que não era nada popular pelos lados de cá: existem os filósofos, aqueles que pensam a realidade de maneira conceitual e universal, frequentemente partindo de outros filósofos. Há também os historiadores da filosofia, aqueles que buscam situar em qual realidade tal ou qual pensador se insere, quais suas influências, com quem dialoga, etc., o que nem sempre fica evidente. Por fim, teremos os comentadores de filosofia, cuja característica é elucidar escritos e raciocínios de outros filósofos. A filosofia no Brasil foi formada por estes últimos, com a formação do primeiro Departamento de Filosofia no Brasil, na USP, com a importação de professores franceses.

Não é incomum que se encontre pesquisadores, professores, estudantes, escritores, etc., que dirão que não há mais nada com o que a filosofia possa contribuir no nosso mundo, sendo, portanto, nossa tarefa estudar sua história e tecer-lhe comentários. Se fosse isso, ainda seria positivo; a história é essencial para a humanidade presente. Passar décadas comentando detalhes e minúcias dos livros dos filósofos, nem tanto. Certa vez, soube que se discutiria num Simpósio de estudos sobre Immanuel Kant que este, numa única linha de toda sua obra, dava a entender que alguns seres possuem geração espontânea. Não quero dizer que é inútil pensar sobre isso, mas será que é realmente o melhor que podemos fazer com a filosofia kantiana no Brasil durante o século XXI?

Meu referido professor era mordaz: dizia que se fossemos nos simpósios, encontros de pesquisa e eventos acadêmicos de filosofia no Brasil – reconhecido como uma das maiores comunidades filosóficas do mundo, em número – e apagássemos da história 60%, 70% dos trabalhos ali apresentados, não faria nenhuma diferença. Também dava a entender que se deu por um certo erro histórico, acidental: o fato de que a filosofia formal no nosso país começou com franceses comentadores de filosofia.

Porém, quero trazer outra perspectiva que, talvez, responda o

porquê tantos cursos de graduação, de mestrado e doutorado em Filosofia no Brasil produzem tão poucos filósofos que pensam nossa realidade. Enrique Dussel, filósofo argentino erradicado no México, tem uma ideia interessante: os centros formais de filosofia na América Latina nos fazem analfabetos de nossos alfabetos para nos alfabetizar como europeus. No entanto, como não somos europeus, ficamos por eles escamoteados, deixados de lado, e perambulamos como um grande nada na história, pois deixamos de lado o que é nosso para nos adequarmos a uma realidade que só se interessa pela nossa para a espoliar, estuprar, roubar, e o que mais que tem feito nos últimos 500 anos e que sustentam sua dominação sobre o resto do mundo, nunca pelas nossas ideias.

Não se trata, claro, de jogar fora a água com o bebê dentro, e abandonar tudo que a filosofia produziu até hoje, tendo em vista seu evidente desenvolvimento em terras europeias. Platão e Aristóteles ainda são relevantes para pensarmos nossa realidade. A questão é outra: a que(m) interessa tolher o raciocínio filosófico original, atido à realidade concreta em que se vive? E, neste caso, a filosofia que surja da carne do povo latino-americano.

Durante minha graduação e Mestrado, busquei fazer críticas a Hegel, pensador que acredito ser genial, mas também cometeu erros e equívocos, o que não deveria surpreender dado se tratar de um ser humano, a despeito do que acreditam alguns acólitos de sua filosofia – e também da filosofia como um todo. Escutei de professores e alunos que eu, um mero jovem, de origem pobre, nascido no interior do Brasil de mãe costureira e pai pedreiro, um “nada” ainda vindo a ser, não tinha o direito de criticar um filósofo monumental como Hegel, e deveria no mínimo esperar terminar um doutorado para ter legitimidade a isso. Leia-se: deveria esperar minha alfabetização europeia e minha analfabetização latina. Se assim fosse, a crítica viria do nada (de um pseudo-europeu num mundo espoliado e desprezado pela Europa) e iria para o nada da história. Nem chegaria a ser pó para a ele retornar. Nunca se tratou de criar legitimidade com o tempo, o que talvez seja razoável, mas sim de inculcar uma ideia de que esse nada não poderia vir a ser jamais.

Estou receoso de parecer anedótico, mas devo contar ao menos mais uma história: certa vez, num evento filosófico, um comunicador foi apresentar um trabalho importantíssimo para a humanidade: até que ponto podemos determinar se Sócrates existiu de fato ou se se trata de um personagem de Platão. Tão importante quanto sua temática foi sua conclusão: não é possível concluir nada. É fato que boa parte do que sabemos de Sócrates foi escrito por Platão, seu pupilo e que nutria muita estima de seu mestre e muito provavelmente concedeu-lhe uma aura muito mais heroica do que deve ter sido na realidade; mas nem isso o comunicador quis concluir. Não teve o mínimo de audácia para afirmar ser este o caso – audácia para afirmar algo já afirmado há algum tempo. Mas, mesmo com toda essa história, algo ainda mais absurdo aconteceu nestes breves minutos: em mais de uma ocasião, o “filósofo” que apresentava estes raciocínios, lendo seu texto em público sem olhar os outros nos olhos em nenhum momento, falava, como se fosse algo honroso, de qual deve ser tarefa de “nós, exegetas...”, e segue-se a esta frase, escrita aqui exatamente da forma como foi dita e repetida, todas as negativas de afirmação, de consolidação de um raciocínio presente.

“Exegese”, segundo o dicionário Michaelis, significa “Comentário esclarecedor com detalhes minuciosos de um texto ou de uma palavra”. Deve utilidade nisso. Mas se a filosofia se resume a comentários de outros filósofos (europeus; ai de quem quiser comentar filósofos africanos, asiáticos, ou de qualquer outra realidade), então de fato não há mais espaço a ela neste mundo. Sendo assim, então cabe a nós transformar ambos.

Autoria
Júlio César Rodrigues da Costa é Mestre em Filosofia pela UNESP, Professor da rede estadual do Estado de São Paulo e colaborador do CCN Notícias.
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