O Soma é um elemento central numa das grandes obras literárias do século XX; a distopia “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Trata-se de um fármaco, uma droga, livremente distribuída e incentivada, ingerida pelas pessoas para evitar a tristeza, tomada regularmente nos momentos de socialização entre os personagens da obra. Tentando evitar spoilers ao leitor, mas estando já de sobreaviso, no momento em que o protagonista da história, Bernard Marx, comunica a seu par romântico suas dúvidas e questionamentos acerca da dominação sofrida por ambos e todos os demais seres humanos, Lenina Crowne não hesita em oferecer-lhe a droga (e posteriormente sexo), para deixar estes pensamentos melancólicos de lado e voltar a ser feliz.

A obra de Huxley foi publicada em 1932. O autor tomou conhecimento da obra “1984”, de George Orwell, outro grande nome da literatura distópica do século XX, publicada em 1949, e escreveu-lhe uma carta. Elogiou seu romance mas apresentou uma reflexão: na obra de Orwell, a profunda submissão dos personagens ainda perpassa uma longa e árdua disciplina física, através do aprisionamento, da violência, da vigilância continua, etc., enquanto Huxley acreditava que, eventualmente, os governos autoritários desenvolveriam uma tecnologia muito mais refinada de controle, de ordem psicológica, através do qual a disciplina física ficaria deixada a segundo plano. O Soma retrata este papel em sua obra.

A despeito das muitas provas de incentivo do uso de drogas em vários momentos históricos de crise e levante social, especialmente do álcool - mas faço a menção honrosa do uso do ópio como instrumento de dominação de povos orientais - penso que temos, hoje, um “novo” Soma, largamente incentivado como maneira de “evitar” tristezas e melancolias, e se encontra na palma da mão da maioria dos brasileiros, a tela na qual, acredito, a maioria dos leitores leem este texto. Diversas pesquisas apontam que no Brasil já há mais celulares do que pessoas, e nosso país nem ocupa o topo do ranking de número dos aparelhos. E, mais ainda do que os celulares, que, como dispositivos tecnológicos, não são essencialmente “malignos” (tampouco benignos), penso que as redes sociais exercem de maneira mais aguda o papel de evitar a tristeza da população.

Ainda que a pandemia tenha certamente contribuído para o aprofundamento desta situação que tento traçar aqui, isso já se apresentava desde antes. Em 2017, o Instagram foi apontado como rede social mais tóxica para jovens, pelo foco que possui na imagem de seus usuários. Em 2018, um jovem britânico foi diagnosticado como viciado em tirar selfies, fotos de si mesmo, geralmente, postadas em redes sociais, especialmente o Instagram; o jovem afirma que se fotografava cerca de 200 vezes por dia. Passando um pouco no tempo, agora sim após o período mais rígido de isolamento recorrente da pandemia da COVID, em 2022, já com a popularização do TikTok, indicava-se como seu modelo de vídeos curtos, com edições visualmente chamativas, rápidas, produz dopamina em nossos corpos.

Byung-Chul Han, um filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, aponta, em resumo, na sua obra “A Sociedade do Cansaço”, como o colapso psíquico da sociedade contemporânea, cujo grande sintoma é a depressão, ansiedade e demais doenças psicológicas, não fora causado pela negatividade geralmente atribuída aos sentimentos dessa doença – tristeza, sensação de isolamento, ausência de energia, etc. – mas, contraditoriamente, pela ausência da negatividade nas nossas vidas, numa situação em que somos transbordados de conteúdos (pretensamente) positivos. Penso que um bom exemplo para o leitor se encontra em algumas das cenas do filme “Não Olhe para Cima”, de Adam McKay, em que jornalistas, com a iminência de um cataclismo destruidor da Terra, buscam ainda repassar boas notícias aos telespectadores, público este que embarca tranquilamente no barco da positividade de um mundo à beira de seu fim. Uma imagem, que acabou virando meme no Brasil, foi de alguns jornalistas, de verdade desta vez, como que deitados banhando-se de sol numa praia durante o período de calor dos últimos meses no Brasil, claramente resultado da destruição do planeta provocada por nós mesmos e que caminha a passos largos.

Para sintetizar, a ideia do filósofo é que nossa sociedade não está psicologicamente doente pela existência em larga escala de sentimentos negativos, mas ao contrário, pelo estímulo exacerbado de conteúdos positivos. É pelo fato da humanidade consumir diariamente o Soma concreto, não o literário, que se apresenta facilmente no bolso da população.

Durante a escrita deste texto até este momento, devo ter parado pelo menos 5 vezes para checar o celular; trata-se de um movimento tão automático que sou incapaz de ter certeza sobre quantas vezes o fiz, como jamais consigo ter certeza de quantas vezes pisquei os olhos. No exato momento em que escrevo estas linhas, são 2 horas e 40 minutos da manhã, não há o que checar, o Brasil majoritariamente dorme. Mas o celular a menos de 10 centímetros de minhas mãos fora checado mesmo assim.

Tudo isso surgiu em minha cabeça enquanto estava cogitando como agitar uma greve docente no Estado de São Paulo, visto os cada vez mais terríveis ataques que sofremos e pioraram ainda mais neste 2024 que mal começou, no que pensei também: como posso competir, falando todas as desgraças que sofremos diariamente com meus colegas docentes, se para se sentirem felizes, bastam eles abaixarem os olhos e checarem as nudes de seus contatinhos, esposos, esposas e amantes? Como chamo a atenção da garota que vi na praia durante o Reveillon para a destruição do mundo em seu entorno, enquanto ela se fotografa por, no mínimo, 30 minutos de forma ininterrupta, por vezes trazendo seus pais para sua atividade narcisista? O que posso dizer sobre Descartes, Platão ou Kant para atrair a atenção dos meus alunos e fazê-los pensar filosoficamente que será mais interessante do que as dancinhas do TikTok?

Antes de terminar o texto, checo mais uma vez o celular, com a consciência de que acabei de fazê-lo há 10 minutos e agora, tal qual antes, não havia nada ali. Assim como o filósofo sul-coreano citado anteriormente, penso que a única maneira de começarmos a solucionar esse problema é olharmos de fato o nada, permitirmo-nos sentir o tédio, não a ausência de notificações de nossas redes sociais, na esperança que o abismo finalmente nos olhe de volta. Uma última checagem do celular e enviarei o texto na esperança de ser publicado. Estarei atento à notificação sobre sua confirmação (ou não).

Autoria
Júlio César Rodrigues da Costa é Mestre em Filosofia pela UNESP, Professor da rede estadual do Ensino de São Paulo e colaborador do CCN Notíciais

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