Ao longo da história, escrita pelos olhos do patriarcado, assistimos aos avanços ininterruptos das mulheres para a sua libertação. Cada degrau alcançado, desde o direito à alma – negado na Antiguidade – até a organização por nossos direitos – que significa incluir a nós, mulheres, comunidade negra, indígenas, lgbtqia+, população vulnerável, na Constituição Brasileira – nos custou vidas e lágrimas.

As conquistas se consolidam em ritmo muito lento, em soluços, muitas vezes em tempo maior que o da própria existência. O fato é que ainda são muitos os entraves e boicotes que encontramos na busca por igualdade, direitos e representatividade.

Com o direito ao voto feminino não foi diferente. A luta das mulheres sufragistas sofreu boicotes e limitações impostos pela estrutura machista.

A extensão do direito ao voto às mulheres aconteceu por decreto do Presidente Getúlio Vargas, em 1932. De modo geral, celebramos esta data. Mas um olhar mais atencioso à história revela questões importantes para a gente pensar nas lutas atuais das mulheres.

A verdade é que o decreto de Vargas não tornava o voto obrigatório a todas as mulheres. Assim como para os homens acima de 60 anos, para as mulheres casadas o voto era facultativo. Considerando que o Código Civil da época estabelecia que o homem era reconhecido e outorgado pelo Estado como responsável por sua esposa, cabia ao homem a permissão para que a mulher se inscrevesse para votar.

Assim, na prática, as mulheres que poderiam exercer autonomamente o direito ao voto ou de serem votadas eram as solteiras e as que trabalhavam.

Portanto, o sufrágio universal para as mulheres não se deu em 1932. A expansão dos direitos políticos para algumas mulheres, não significou a superação da inferioridade das mulheres em relação aos seus direitos civis.

Somente em 1965 o voto se torna obrigatório para ambos os sexos, depois da “alteração jurídica da mulher casada”, que ocorreu apenas em 1962. Pelo Código Civil, a mulher é retirada do rol de incapazes, sendo o exercício da sociedade conjugal feito em colaboração entre a mulher e o homem, ainda sob a chefia deste último.

Mas o que tudo isso significa? Que a despeito de ser uma vitória da luta das sufragistas brasileiras, a conquista do voto feminino em 32 não representou o rompimento dos ordenamentos jurídicos das estruturas patriarcais.

Sub-representação feminina

Sabemos que a desigualdade não acaba por decreto e nem esperávamos por isso. Mas queremos chamar atenção para mais um exemplo de como alguns desafios formais e institucionais permanecem no caso dos direitos das mulheres. De alguma forma e ainda por muito tempo, os homens vêm sustentando a hegemonia na política com pequenas concessões. Operando mudanças superficiais que não alteram substancialmente a realidade concreta.

Reconhecendo nossas vitórias, é fundamental que prestemos atenção à Lei de Cotas. A obrigatoriedade de todos os partidos lançarem chapas proporcionais com reserva de 30% a um dos gêneros, no caso, sempre se entende que essa reserva é das mulheres, mas não significa eleger ao menos 30% de mulheres nos parlamentos. Além disso, corre-se o risco de algum partido dar um “jeitinho”, o que pode significar fazer da cota, o teto, ou ensejar candidaturas laranjas que de lambuja permitem a transferência de recursos para candidaturas de homens.

Ainda que tenha havido aumento de mulheres eleitas, desde a eleição de 1998 não ultrapassamos os 15% das cadeiras no Congresso Nacional e isso já considerando a vigência da reserva do fundo eleitoral e obrigatoriedade dos partidos investirem parte do fundo partidário nas mulheres. Se olharmos para a questão da representatividade das mulheres negras e indígenas, a situação é ainda pior. Com quase 30% da população, as mulheres negras são menos de 3% na Câmara de Deputados.

Em 2021, o Congresso aprovou mais um dispositivo que procura enfrentar a questão da sub-representação. E adotou algo novo, mudando a lógica da compulsoriedade e da punição para a lógica da recompensa. Para efeitos da divisão do fundo partidário e eleitoral, os votos de negros em mulheres terão peso dois. O que em teoria deve estimular os partidos a incentivarem candidaturas competitivas e puxadoras de votos de mulheres e negros.

Esse incentivo terá vigência de 2022 a 2030. Espera-se que isso produza efeitos concretos na superação da sub-representação de grupos subalternos. Em outras palavras, que impulsione uma aceleração na velocidade para aumentarmos nossa presença nos parlamentos.

No entanto, considerando a habilidade de partidos de se adaptarem a essas políticas afirmativas, sem contudo mudar substancialmente suas estruturas e, sobretudo, sem que os homens brancos percam sua histórica hegemonia, parece incontornável a necessidade de enfrentarmos – com seriedade e disposição para abrir mão de privilégios – o debate da reforma política.

Neste ano em que voltaremos às urnas, façamos com que nosso voto seja um caminho para nossas conquistas enquanto sociedade.