“Senhor, há algo de errado!”, foram as palavras trazidas pelo produtor do evento. A estrela nacional, Rachel Simões, cantava naquela noite. Veio à cidade com o tradicional evento popular caracterizado pelos fogos de artifício, pelas mesmas coreografias e pelos mesmos hits populares que já estavam inseridos no subconsciente de toda a população. Mesmo aqueles que não gostavam das músicas de Rachel, sabiam cantá-las, visto as repetidas vezes que escutavam, passivamente, em comerciais de televisão, propagandas online, carros de som na rua. Outdoors espalhados por todo canto a anunciar o grande evento que chegava, os quais traziam estampados em si determinados versos das músicas mais populares da cantora, de forma bem chamativa. Foi assim que Rachel — ou seu produtor e empresário — conquistou um país de ouvintes, fossem estes adeptos ou não ao gosto da música popular.

O senhor a quem o produtor se referia era o grande financiador do evento, o dono do espaço e responsável por tudo, inclusive pelo lucro final. O tal senhor perguntou logo o que havia de errado, de forma que o produtor respondeu:

— A plateia, senhor. O público...O público...Er...

— Desembucha, rapaz! O que há com o público?

— O público parou!”, gritou o eufórico produtor.

O senhor nem ousou perguntar qualquer coisa a mais; empurrou o produtor de lado como se este lhe obstruísse todo o caminho até o palco. Ali, o tal senhor viu a estrela Rachel cantando outro de seus hits, executando a coreografia daquela música de forma impecável, à frente de suas companheiras dançarinas. Todas elas se mexendo sobre sapatos de salto alto, a rodopiar as saias curtas.

Tudo parecia normal. Num instante, porém, o senhor lembrou que o produtor havia reclamado do público, e não do que acontecia sobre o palco. Seus olhos se dirigiram ao outro lado e só então percebeu a multidão que olhava fixamente em direção ao palco, todos em conjunto, estagnados, sem uma única exceção. Pareciam o exército chinês de terracota: estátuas perfeitas e singulares. Ora, que extraordinário acontecimento! O povo não dançava, não pulava; não cantavam, não gritavam, não interagiam nem com Rachel nem entre si. O público havia parado, conforme as palavras do produtor.

O senhor ficou por alguns momentos paralisado, como o grande público. Prestavam assim tanta atenção na música? Havia Rachel feito algo de errado? Ela acabara de finalizar uma canção, e nenhum aplauso, grito, ou mesmo vaia foram ouvidos. Não havia tempo a perder. O senhor gritou então ao produtor que mandasse entrar os homens de esculpidos corpos, e que rasgassem as camisetas sobre o palco. Fizeram, e o público não se moveu. Silêncio. Rachel olhava ao produtor, indignada, como se a natureza houvesse mudado uma lei fundamental da realidade. Saíram os homens; o produtor mandou que repetissem o hit mais popular de Rachel. Nada. O público permanecia fiel ao silêncio. O senhor e o produtor não sabiam o que fazer. Sem o clamor do público, não havia espetáculo, somente uma apresentação. Como última tentativa, mandaram explodir os fogos de artifício ao mesmo tempo em que bolhas de sabão voavam em direção ao público. Os homens de peito nu voltaram à cena. Impacientada, achando aquilo um desaforo-desafio, pensando haver alguma brincadeira de mau-gosto compartilhada previamente entre o público, e encenada numa muito bem orquestrada insensibilidade, Rachel agora gritava ao povo para que respondessem. Sortearia, dentre eles, fã, para subir ao palco e cantar-dançar com ela. Não se ouviu resposta. O espetáculo, concordaram intimamente, mudara de lado. A segurança local foi acionada para perguntar ao povo o que acontecia, mas nada respondiam os que eram perguntados ou sacudidos. Sem sucesso, em horror se afastaram. Seria doença contagiosa?

Realmente, nada acontecia vindo do público. A estrela apelou: chorosa, disse no microfone que não continuaria a apresentação e que estava terrivelmente triste com aquela troça. Recebeu, como resposta, o silêncio. O senhor dono do evento sofrera um ataque cardíaco e era atendido. O produtor chamou Raquel para os bastidores; decidiu cancelar o evento. Um dos membros da banda gritava ao povo, vociferava os mais fortes insultos, dizendo como estavam errados em fazer aquilo com Rachel e a banda. “Vão embora daqui!”, disse antes de ser arrastado por um segurança da banda até os bastidores.

Ainda não se sabe por quê; talvez por terem se cansado de esperar pelo bis, mas, em pouco tempo, o público deu meia volta e foi embora.

Autoria
Matheus Zucato é mineiro, autor dos livros “Os Dois Fazendeiros” (Autografia, 2018) e “Realidades Rompidas” (Edição do autor, 2021). Participa de antologias de contos e mantém crônicas mensais publicadas em jornais de São Paulo e Minas, desde 2018. Vencedor do I Concurso de Contos de Iguaba Grande (AACLIG, RJ), em 2019. Recebeu menção honrosa no VIII Concurso Literário da Academia Penedense de Letras (APLACC, AL), em 2022 e foi segundo lugar no VII Concurso Literário da Academia Leopoldinense de Letras (ALLA, MG), também em 2022. É colaborador do CCN Notícias.
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