Este conto ficou em 2º lugar no VII Concurso Literário da Academia Leopoldinense de Letras e Artes – Minas Gerais, 2022.
Seus dedos já doíam, visto a força com a qual esticava a pele do rosto. Era senhora, tinha a experiência gladiadora da vida, o que, se por um lado enobrecia-lhe o saber incorpóreo, do outro arrefecia-lhe o delicado material de que era feita. Ouvia certo zumbido endurecido do tempo que neste período se fazia notar: esticava as peles dos cantos dos olhos e tentava o intermédio entre as rugas a aparecerem ou os olhos a tornarem-se artificiais, outros que nãos os seus. Cansada não só do trabalho com os dedos, afrouxou-os e voltou ao estado natural, marcas vermelhas nos pontos onde os dedos serviram de grampo. Aí estava ela, uma imagem pálida e fria, uma figura que seguramente exigia o relembrar.
A pele flácida zombava em silêncio: velas derretidas incolores a escorrerem os anos de mais rigidez; uma chama de décadas que lentamente desbotava no corpo da idade e cujo brilho vacilava entre os sopros que a vida dava. Temia tanto o escuro, mas não o escuro da morte; ao contrário, temia o escuro que a vida podia ter quando então os olhos do público a encarassem com a complacência que dedicamos ao vulto senil. Nada era pior do que a complacência. Preferia perder-se em migalhas de pão, mordida a mordida que ratos e baratas cravar-lhe-iam no corpo; pois mutilações do espírito lhe doíam demais; era isso, a ser tratada como o pão dormido de padaria. E se a voz do povo era a voz de Deus, assim se transformavam, também, os olhos humanos em divinos. Pior, portanto, do que a complacência popular seria, portanto, a complacência de Deus. Ah, o obstinado tempo carrancudo...
Diante de tal ideia, restava lembrar dos anos em que seu brilho tinha aquele poder ofuscante. Lembrou dos bailes de clube, das paqueras à distância e dos convites para uma dança. Como amava dançar! O toque quente dos dedos de um pretendente apaixonado nas suas imaculadas mãos, o balançar do corpo apoiado, a segurança de ter os pares conforme desejasse ou não. Tocou os cabelos finos, tingidos da pura luxúria, substitutos dos cachos que a embelezaram como a uma deusa, em tempos de outrora. Perguntou-se onde estava a eterna primavera. Na rua, os carros passavam e ela sem querer e sem poder, pensou em fechar a janela e dormir. Mas era noite de baile. Queria fugir da sua tentativa de fuga. Delineou os traços do orgulhoso rosto que lhe fora sua matéria-prima juvenil; sabia do calibre de seus feitos e se esbanjava de possuir aquela formosura de que tanto orgulhou-se em outros tempos e que, agora, queria arrancar com as unhas, uma sincera vontade de extirpar arrancar cada fiapo daquele tecido de linho que formava o seu rosto. Subitamente veio-lhe a imagem de um papiro egípcio preenchido de hieróglifos mágicos. Quem sabe ela não se tornaria areia soprada sem cerimônia na imensidão frívola de um deserto. Desejou possuir o Livro dos Mortos para trazer de volta à vida o esplendor. Resignada, começou a maquiar-se.
Pois ela era a madame, a senhora de luxo, e, ainda que o tempo lhe houvesse ultrajado, ninguém na cidade ousaria contestar a classe em que seus passos desfilavam nos eventos culturais: os bailes retrô, as inaugurações, ou um dos vários jantares para os quais era convidada, como fosse um aparato de magnificência, um veredito da grandiosidade duma ocasião festiva. Pôs orgulhosa a peruca de louros cachos reluzentes, pois esta noite não se contentava nem com os cabelos pintados que possuía. Mecanicamente, olhou-se no espelho. A maquiagem bela e pomposa embelezava o seu templo. Terminou os últimos retoques naquele quadro vivo que pintava de forma tão morta. O batom dançava nos dedos grossos de unhas pintadas e, quase perfeita, sentiu que um véu cobria seu fulgor, pois naquele rosto não conseguiu pintar, com a alma, um sorriso, que se esvaia a cada intenção. Pois sorrir é um dom raro da vida, dom que perde lentamente os dentes da alma. Desaparecia-se a capacidade de sorrir com o espelho mudo. Com as pontas dos dedos, experimentou puxar a boca de forma que se formasse na boca mal pincelada um sorriso circense. Que é que fazia de si? Cansada não só do trabalho que tinha para manter a pele esticada com os nodosos dedos das mãos, deixou cair as mãos no colo, e um livre um sorriso brotou no espelho em sua frente, na imagem sua despregada de si.
Lançou o derradeiro olhar ao reflexo em sua frente; o batom vacilante ganhou movimento e aquela mulher do espelho encaixou no rosto, como uma peça de quebracabeça, rubro par de lábios imagéticos. O espelho, frio, sorria! A mulher em sua frente, roubava-lhe o passado e lhe desdenhava o futuro; era jovem, não podia ter mais de quarenta anos. Viu como ela era feliz, pomposa, orgulhosa de quem era, e como esbanjava aquele riso em forma de meia lua de sangue, produzido na superfície gelada. A senhora ouviu a buzina e se atrapalhou. Depositou o batom na penteadeira de madeira enquanto observou seu espectro desvencilhar-se do espelho, passar por si, em exibição daquela boca carmim, aprumar o corpo e partir em direção a porta da frente do luxuoso apartamento em que vivia, para pegar o táxi que a esperava na rua lá embaixo.