O caso no menino Miguel chocou a todos nessa última semana. Terça-feira, 2 de junho, Recife, PE: o menino de 5 anos acompanhou sua mãe, Mirtes Renata de Souza, ao trabalho no apartamento dos patrões, porque as creches ainda não voltaram a funcionar, devido à pandemia da Covid-19 e, portanto, a mãe trabalhadora não tinha com quem deixar seu filho.
No serviço, Mirtes teve de sair para passear com o cachorro da patroa, Sari Corte Real, e deixou Miguel aos cuidados dela, que fazia as unhas com uma manicure no apartamento. Sari “não teve paciência” quando o menino começou a chorar a procura da mãe. A patroa deixou Miguel entrar no elevador sozinho, no 5º andar, para procurar a mãe. As imagens da segurança do condomínio, divulgadas pela Polícia Civil, mostram que Sari, a patroa, fala com o menino no elevador e ela parece apertar um dos botões. O garoto foi parar o 9º andar, se perdeu, escalou uma grade em uma área de aparelhos de ar-condicionado e caiu de 35 metros de altura. Sari foi presa em flagrante, indiciada por homicídio culposo (aquele que não tem a intenção de matar), pagou uma fiança de 20 mil reais e responderá ao processo em liberdade. A Polícia considerou que Sari agiu com negligência no caso.
Quem são essas mulheres?
Mirtes, uma mulher negra, mãe de um menino negro, moradora da região periférica da Grande Recife. Pobre, trabalhava como empregada doméstica na casa da família de Sari, desde 2017, segundo divulgado pela Polícia Civil. Mirtes, em entrevista à Rede Globo, afirmou que também cuidava dos filhos da patroa como se fossem seus e, no único instante em que confiou seu filho a ela, aconteceu aquela situação. As identidades dos patrões de Mirtes só foram divulgadas por Mirtes, porque, até então, essa informação era mantida em segredo pela Polícia Civil. Após a informação vir a público, descobriu-se que o casal era “autoridade” política da Região. Sérgio Hacker (PSB), marido de Sari, é prefeito de Tamandaré, pouco mais de 100 km de Recife.
Sari Corte Real é uma mulher branca, primeira-dama de Tamandaré. Em sua ficha consta mais duas polêmicas. A primeira-dama está cadastrada na Caixa para receber o Auxílio Emergencial, pago a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica durante a pandemia. Segundo o Dataprev, o cadastro foi realizado em 14 de maio e consta em análise. Contudo, não se pode afirmar que a solicitação tenha sido feita pela própria Sari. Mais de 10 milhões de pessoas estão com o pedido em análise, de acordo com a Caixa Econômica Federal.
A outra polêmica é a forma de contratação de suas funcionárias. Mirtes e sua mãe, Marta Souza, avó de Miguel, constam como funcionárias públicas na Prefeitura de Tamandaré. Apesar de não desempenharem nenhuma função pública, segundo o Portal da Transparência de Tamandaré, Mirtes é Gerente de Divisão CC6, com lotação em Manutenção das Atividades de Administração, um cargo comissionado. Na folha de pagamento, constam salários de R$ 1.517,57 a cada uma delas, até março de 2020. No entanto, em abril e maio, período em que houve o fortalecimento da quarentena no país, o pagamento baixou para R$ 1.093,62, atual salário mínimo. O Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) deu início às investigações na tentativa de averiguar a possibilidade de outras fraudes.
A questão racial
A morte de Miguel ocorreu em meio aos protestos massivos nos Estados Unidos contra o assassinato de George Floyd, um homem negro, morto asfixiado pela polícia estadunidense. Em entrevista da BBC Brasil com a historiadora Luciana da Curz Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e especialista em história da escravidão, abolição e pós-abolição no Brasil e nos Estados Unidos, a morte de Miguel resume o debate sobre as diferenças entre a questão racial nos dois países.
No Brasil, o imaginário da democracia racial promove a supremacia branca de maneira a acharmos que “algumas pessoas são mais humanas que outras”. Ao analisar o caso, Luciana indica que, desde o início da pandemia, as trabalhadoras domésticas foram as primeiras a se contaminarem sem sair do país. E também foram as mulheres a aparecerem ao fundo das lives das celebridades, pedindo ao grande público para permanecer em casa. Então, Mirtes, que não tinha onde deixar seu filho, correu o risco de exporem a ambos à contaminação na casa de seus patrões.
Outro ponto levantado é o saudosismo escravocrata no Brasil. Na ocasião, a patroa estava em casa rodeada de serviçais (a empregada doméstica e a manicure), mesmo em um contexto de pandemia e isolamento social. Chama a atenção também, o fato da mãe de Miguel levar o cachorro para passear, função que qualquer pessoa poderia fazer, inclusive a dona do cachorro. Segundo Luciana: “o cachorro tem um pouco da extensão da humanidade da dona. Ele tem uma atenção mais qualificada, que a da trabalhadora doméstica”.
Ao deixar a criança sozinha no elevador, Luciana afirma que, após ver o vídeo, Sari age de forma como se a criança fosse um adulto impertinente. Ao resgatar o caso de Tamir Rice, nos Estados Unidos, um pré-adolescente de 12 anos, negro, que brincava com uma arma de brinquedo, uma pessoa viu da janela, ligou para a polícia afirmando que o jovem tinha 20 anos. A polícia ao chegar ao local, atirou com o carro ainda em movimento e matou Tamir. Desta maneira, a situação revela que para alguns, crianças negras, especialmente meninos, não têm infância.
A investigação do caso Miguel segue em curso, sem muitos detalhes. Pela entrevista da mãe, pode-se perceber que a mulher coloca o menino no elevador, aperta o botão, como dá para ver no vídeo e, aparentemente, volta a fazer as unhas. Pelo que se sabe do ocorrido, a historiadora entendeu, que a própria mãe descobre pelo zelador a morte do filho. A patroa nem sequer vigiou para saber o paradeiro de Miguel, o que revela desprezo pelo ser humano. Luciana Brito, da UFRB, vê, neste caso, típico sentimento de “supremacia branca” no caso de Sari. O leitor que quiser ler a entrevista completa da professora, acesse https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52932110
E se fosse ao contrário?
Sari Corte Real, a primeira-dama de Tamandaré, PE, que pagou a fiança e responderá em liberdade, divulgou uma carta com o pedido de desculpas. Um trecho da carta diz: “Como mãe, sou absolutamente solidária ao seu sofrimento. Miguel é e sempre será um anjo na sua vida e na sua família. Não há palavras para descrever o sofrimento dessa perda irreparável. (…) As redes sociais potencializam o ódio das pessoas. Tenho certeza que a Justiça esclarecerá a verdade”. Em entrevista ao Jornal da Band, Mirtes Regina, mãe de Miguel, afirma que “se fosse eu, tava dentro de um presídio”. Afirma que ela não teria 20 mil reais para pagar a fiança, “isso se fosse dado o direito à fiança”, disse.
E aí, eu pergunto, caro leitor e leitora, e se fosse ao contrário?
Thaís Linhares
Cientista Social e mestranda da Unesp