Nasci com o intuito de realizar a paz perpétua como pensada pelo filósofo alemão Immanuel Kant após a Segunda Guerra Mundial. Novamente citando o filósofo, percebeu-se que a dignidade humana foi atacada de uma maneira jamais vista, e então um projeto internacional que a garantisse seria de suma importância. Pouco depois de meu surgimento, em 1948, foi divulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo primeiro artigo não deixa dúvidas.

Que não se atente, obviamente, ao horror seletivo dos sujeitos que me fundaram, e deveriam de fato estar horrorizados, com a guerra mundial situada especialmente em território europeu, e pouco foram movidos pela colonização – leia-se assimilação e extermínio – do povo que habitava o novo mundo. Minha sede real, a Europa, não existiria sem que tivéssemos lhes roubado tudo, sem que tivéssemos estuprado suas mulheres, sem que buscássemos apagar suas histórias dos livros e seus nomes dos documentos. Mas veja que incrível, em minha morte, que anuncio nesta carta, já se abre a discussão de restituição histórica a esse pobres coitados. Que dádiva!

Tampouco nos atentemos para o que meu nobre povo europeu fez com a África e parte da Ásia depois que fui fundada para defender a humanidade. O saque foi um caminho necessário, tanto quanto o anterior sobre o novo mundo, para que o local do qual parte meu anúncio pudesse se reerguer e proferir tão belas palavras quanto “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Atentem à musicalidade das palavras, àqueles que me leem, e não para os fatos passados e ultrapassados.

De toda forma, hoje, sinto que minha finalidade está mais longe do que jamais esteve. Pois veja bem, do que importa o sofrimento dos desgraçados? Mas o fato é que fui até mesmo incapaz de defender meu povo escolhido, como na guerra da Bósnia e na atual guerra na Ucrânia. Ora, os brancos também sofrem, quem diria! Passei tanto tempo ignorando o sofrimento de outras estirpes que a desgraça de quem me fundou de fato não me atinge mais. Nada pude fazer, por isso peço desculpas.

O que devo dizer, então, do meu filho? Alguns outros escolhi como, de repente, um bicho de estimação pode escolher seu dono; este, no entanto, me senti em dívida tremenda e precisei cria-lo de meu próprio ventre. O Estado de Israel era o mínimo após o sofrimento impetrado pelos nazistas ao povo judeu. Que não me falem do extermínio dos congoleses nas mãos dos belgas e tampouco dos neonazistas (inclusive na Ucrânia, que jurei defender; não consegui defende-la de si mesmo nem de outrem). Já há desgraças demais para suportar.

Hoje, meu filho pródigo queima seres humanos, mas não estou nem perto do poder de Zeus para roubar-lhe o fogo e punir-lhe o fígado. Como o mantive sob minha asa por décadas; como permiti suas atrocidades pelas mesmas décadas, pois sentia a consciência pesada com o que foi permitido fazer ao povo judeu; como criei o Estado sem me preocupar com a estirpe que já habitava a mesma localidade, hoje sou totalmente inútil para lidar com a barbárie cometida pelo sangue de meu sangue.

Claro que os povos do Oriente Médio sofrem há décadas guerras e mais guerras incentivadas pela cobra criada no meu seio, vinda inclusive de outro continente e que teve a pachorra de causar um leve desvio do poder da Europa ao Atlântico Norte, assim como os povos africanos sofrem, mas destes já falamos que não falaríamos, e daqueles o afirmamos agora.

Fato é que minha incapacidade é patente. Sempre esteve latente, mas julgava-me capaz de mostrar minha força caso, suponhamos, uma catástrofe natural atingisse um ou mais membros de meu corpo, ou então uma crise global sanitária demonstrasse a necessidade de cooperação entre os povos. Certo é que, mesmo nestes casos claramente hipotéticos, sinto que nada se modificaria e minha atual impotência se faria ainda mais evidente num cenário apocalíptico.

Por tudo que citei – devendo-se, portanto, ignorar o que pedi para ignorar – sinto que devo deixar este mundo. Não sou capaz de realizar o que vim realizar, então por que continuar?

Aos que ficam, porém, não temam: às vezes é necessário que o velho morra para o novo nascer.

Autoria
Júlio César Rodrigues da Costa é Mestre em Filosofia pela UNESP, Professor da rede estadual do Estado de São Paulo e colaborador do CCN Notícias.
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