Este mês o ilustre filho de Lagoa da Canoa (AL), Hermeto Paschoal, recebeu o título de Doutor Honoris Causa em uma das mais famosas escolas de música do mundo: a Juilliard School, de Nova Iorque. O título, entregue pelo grande jazzista Wynton Marsalis, reconhece a poderosa influência do mestre brasileiro na música contemporânea.
Não é à toa que Miles Davis, que tocou com Hermeto, o chamou de “mais impressionante músico do mundo”. E foram tantos os grandes que se admiraram com a espantosa criatividade de Hermeto que uma lista aqui seria interminável.
Mas de onde surgiu, como se formou este fenômeno? Bem, pense num sujeito baixinho, albino, quase cego, nascido no sertão de Alagoas. A atração pela música, ou melhor, pelos sons, é determinada pela visão deficiente, como ocorre em todas as culturas. E a incrível trajetória de Hermeto se inicia fazendo flautas de mamona, de bambu, prestando atenção ao canto dos pássaros, dos sapos, das águas. Um irmão mais velho, José Neto, também albino, já tocava nas festas familiares. A sanfona de 8 baixos do pai era dividida entre os irmãos, com pandeiros e zabumbas.
Com 24 anos Hermeto saiu de casa, pressentindo que seu futuro era a música. O que mais poderia fazer um garoto pobre senão tocar numa banda de rock’n... epa, não, estamos em Recife, 1950. É ali que Hermeto forma o trio O Mundo Pegando Fogo, com o irmão Zé Neto e outro talentoso multi-instrumentista, Sivuca. Três albinos tocando forrós, xotes, tangos, foxtrotes... a sobrevivência nos bares e boates não era fácil, como até hoje não é. Infelizmente não há registros desse trio incendiando as noites recifenses.
Hermeto se dedicou ao acordeom, e daí passou para o piano. Conheceu o guitarrista Heraldo do Monte, e tocou com a Orquestra Tabajara em João Pessoa. Vai em 1958 para o Rio de Janeiro, meca de todos os músicos naquela época e toca nos grupos de Fafá Lemos e Copinha, entre outros. Começa a surgir seu interesse por instrumentos de sopro, principalmente a flauta.
Em 1961 ruma pra São Paulo. Toca na noite, forma alguns grupos, mas é em 1966, no início da Era dos Festivais, que surge o Quarteto Novo. O velho amigo Heraldo nas violas, violões e guitarras, com Theo de Barros no baixo e Airto Moreira na percussão. E Hermeto dominando os teclados e sopros. Craque na arte de combinar timbres e ritmos, foi natural a evolução para arranjador, com uma influência até hoje não suficientemente reconhecida na música popular brasileira.
No Terceiro Festival de Música Brasileira, lá estava o Quarteto Novo, acompanhando Edu Lobo na vitoriosa Ponteio. Enriqueceram o Canto Geral de Geraldo Vandré, gravaram o primeiro disco do grupo e partiram para outros caminhos. E Hermeto brilhou cada vez mais.
Gravou com Flora Purim e Airto Moreira nos EUA, tocou com vários músicos de jazz e blues, e passou a ser reconhecido como um bruxo (um de seus apelidos). Os hermetismos pascoais (expressão inventada por Caetano Veloso) passam a incorporar instrumentos cada vez mais inusitados, como panelas, bules, água percutida, arames e até os fios da própria barba. Hermeto nunca apagou dentro de si a curiosidade infantil de extrair sons das coisas e se maravilhar com isso. É evidente, em filmagens e vídeos, esse encantamento permanente com o fazer musical, que ele soube como poucos – pouquíssimos! – manter no músico maduro.
Arranjador de um dos discos mais belos e menos conhecidos de Taiguara (Imyra, Tayra, Ipy, 1975), Hermeto pontuou sua carreira com uma série de discos autorais em que explorou muitas formas de música brasileira e universal. As raízes nordestinas se misturam com a vivência urbana recifense, carioca, paulista e, posteriormente, americana.
Inventou choros, como o famoso Bebê, e muitas composições inclassificáveis, embora várias exibam a origem rítmica de seu sertão. Em 1978 tocou com Chick Corea, John McLaughlin e Stan Getz no Festival de Jazz de São Paulo. Em 79 brilhou na Suiça, e ainda deu histórica canja com Elis Regina. Tocou com Dizzie Gillespie em Buenos Aires e Sadao Watanabe no Japão. O documentário Hermeto Campeão, dirigido por Thomaz Farkas e lançado em 1981, mostra o Bruxo compondo uma canção ao vivo, escrevendo na pauta, além de filmar um inusitado concerto com sapos na beira de uma lagoa. Um clássico, disponível no Youtube. Aliás, em certa época Hermeto chamava todos os músicos e amigos de “campeão”, e daí ficou o apelido.
Em outro documentário, Sinfonia do Alto Ribeira (1985), Hermeto e grupo fazem uma sessão dentro do rio, percutindo a água e soprando garrafas. Hermeto mergulha seu pífano na água e produz um som inusitado. Só vendo pra ouvir, ou só ouvindo pra crer!
Entre 1996 e 97, mais um feito heroico: escreveu uma composição por dia, durante um ano, e lançou no livro Calendário do Som (1999, Senac). São 366 músicas (ele não esqueceu o ano bissexto), dedicadas a todos os aniversariantes do mundo.
Não é fácil mergulhar nas criações de Hermeto Paschoal, principalmente porque ele nunca foi dado a facilidades, nunca fez música pra tocar no rádio. O conjunto da obra impressiona pela capacidade de expandir os limites sonoros, para além dos instrumentos tradicionais, além do espantoso domínio de vários instrumentos. Seus shows de prolongavam por horas, para desespero dos produtores e êxtase do público. O título concedido pela Juilliard School reconhece, em âmbito planetário, o talento deste gênio que, mesmo no Brasil, é ainda pouco ouvido e compreendido. Salve, campeão!