Considerações sobre o último show do cantor mineiro

Numa semana marcada por grandes perdas para a cultura brasileira, a despedida dos palcos de Milton Nascimento adquiriu uma carga de significados que talvez demore um pouco para ser completamente absorvida.

O evento, realizado no estádio Mineirão, em Belo Horizonte, teve uma planejada superprodução. Telões, efeitos pirotécnicos e distribuição de cartazes para a plateia foram feitos pensando na transmissão televisiva, mas a formação da banda, a escolha de repertório e o roteiro de apresentação foi gestada muito antes disso.

O início do show se deu através da forte introdução percussiva de Tambores de Minas, reafirmando uma ancestralidade negra sempre presente na obra do compositor. No centro do palco, Milton Nascimento, 80 anos, surge sentado numa espécie de trono, vestindo um traje que remete ao Manto da Apresentação de Bispo do Rosário, com um colorido mais forte. Uma homenagem a um artista negro marginalizado, mas também uma sutil referência à proximidade do fim, ou do reencontro com o sagrado. Bispo do Rosário passou anos preparando o manto com que iria subir ao céu, como dizia. O manto de Milton Nascimento foi criado pelo estilista mineiro Ronaldo Fraga.

Visualmente está dada uma das chaves para compreender a amplitude do show. A proximidade da morte, criativamente elaborada como uma celebração da vida. Dualidade presente em várias canções de Milton Nascimento e seus parceiros. Estamos falando de cultura.

Após a explosão percussiva da abertura, Milton estabelece outra conexão, agora com sua infância. Pega a sanfoninha, celebrizada em uma de suas fotos mais conhecidas, e toca Ponta de Areia, canção que fala de coisas perdidas, de estradas de ferro abandonadas, símbolo tão caro a Minas Gerais. Por extensão, do Brasil. É bom lembrar que Ponta de Areia era o porto no litoral da Bahia, que “ligava Minas ao mar”, nos versos precisos de Fernando Brant.

O mergulho no universo das lembranças torna-se mais denso com Morro Velho, também de Milton/Brant. Uma canção que realiza o milagre de amalgamar Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e todos os sociólogos que se debruçaram sobre a estrutura de classes no mundo rural brasileiro, sintetizados em versos livres, que só um gênio conseguiria musicar de forma tão perfeita.

Outra chave se abre: a do observador das desigualdades sociais, da discriminação, da injustiça do mundo. Nunca panfletário, mas sempre atento, consciente do papel de artista. E emenda com Outubro, que se encerra com os premonitórios versos “minha história está contada/ vou me despedir”.

Em seguida desfiou um bloco de canções do chamado Clube da Esquina, com a presença no palco de Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e, um pouco depois, Wagner Tiso.

Pense num único negro num grupo de brancos. Mas um negro cujo talento é tão superior, cuja voz é tão sublime, cuja musicalidade é tão rica, que acaba envolvendo todos de tal forma que os parceiros-letristas são contaminados por sua visão ingênua e libertária da vida. Quando escrevem com Milton Nascimento, eles se tornam Milton, constroem e verbalizam imagens e sentimentos que jamais teriam se o crooner do grupo fosse um louro italiano ou anglo-saxônico.

Mas a voz de Milton Nascimento, 80, não é a mesma. As mãos já não fazem aqueles acordes dissonantes e inovadores que o tornaram reverenciado por músicos do mundo inteiro. Cercado por uma afiada banda de novos músicos, com destaque para o vocal de Zé Ibarra, Milton Nascimento desfila uma série de sucessos que fazem a plateia do Mineirão cantar e pular feito como um show de rock. Para Lennon e MacCartneyComo um Girassol da Mesma For dos Teus CabelosTudo o Que Você Podia SerNada Será como AntesFé Cega, Faca Amolada, e muitas outras (não cito aqui em ordem cronológica).

Uma nova conexão fica evidente: com tudo o que o mundo estava vivendo nos anos 1960, 1970, 1980. Não de forma explícita, mas no comportamento. Lembranças do flower power, dos festivais, da liberdade sexual, da oposição aos padrões sociais. O desfile de canções começa a ultrapassar divisas e fronteiras, e as parcerias com seus companheiros de geração iluminam a noite. Paula e Bebeto (Milton/Caetano) é um hino libertário, até hoje. Gravado por ele e Gal Costa, a quem o show é dedicado. O Clube cruza acordes e versos com a Tropicália, de forma amorosa.

Abre-se mais uma porta sensorial, com Cálix Bento, seguida de Peixinhos do Mar e Cuitelinho. Temas folclóricos, ancestrais, recolhidos e perpetuados através de gerações. Milton Nascimento mostra, sem necessidade de nenhum discurso rebarbativo, sua ligação com o Brasil mais profundo, com as tradições mais singelas e originais de nossa cultura. Tudo é coroado pela magnífica canção Cio da Terra, (Milton/Chico Buarque), hino-síntese sobre o qual não é preciso dizer nada, só ouvir. Outro grande ausente da semana, Rolando Boldrin, certamente sorriu nesse momento.

Milton Nascimento não esquece o continente onde nasceu, a América Latina. Os camponeses, os operários, os explorados estão também do outro lado da fronteira, seja lá qual for. E Violeta Parra é lembrada, assim como a amiga Mercedes Sosa. Volver a Los 17 é cantada de forma emocionada por uma plateia onde predominavam jovens (ou será que as câmeras da Globo Play foram seletivas?). É sintomático que, terminado o espetáculo e Milton Nascimento sendo levado do palco pelo filho e amigos, o playback soasse a Canción por La Unidad Latinoamericana, do cubano Pablo Milanez, celebrizada por aqui pela versão de Chico Buarque e do próprio Milton.

Para completar, não faltou o discurso político, direto, universal. Após Coração de Estudante, emblemática parceria com Wagner Tiso, é encerrada com uma frase curta: “Viva a democracia”. A plateia emendou um Lula-lá, com centenas de mãos fazendo um “L” para as câmeras.

Avaliar a influência de obra tão imensa, tão intensa, é coisa para as próximas gerações. Em um último gesto público, Milton Nascimento levanta importantes questões para o Brasil, para a nossa cultura. Que maléficos mecanismos fizeram com que a grande canção popular brasileira deixasse de ser “popular”? O que faz com que talentos como Milton, Chico, Gil, Paulinho, Caetano, Melodia, Sérgio Santos, os velhos e novos sambistas e tantos outros, sejam escanteados para nichos obscuros, enquanto coisas execráveis, poética e musicalmente, ocupem os holofotes da mídia televisiva e radiofônica?  Que tipo de rebaixamento cultural a imprensa promoveu nos últimos anos, e com que interesses?

Só temos de agradecer a esse imenso artista que nos deu tanto, e que nos proporciona em sua despedida dos palcos, mais que excelente música, várias reflexões.

Autoria
Daniel Brazil é roteirista, diretor de TV. Escreve regularmente para os sites "Revista Música Brasileira", "A Terra é Redonda" e alimenta seu blog "Fósforo", sobre literatura.
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