A vitória da atriz Fernanda Torres, durante a premiação do Globo de Ouro, na madrugada do último dia 6 de janeiro, não é pouca coisa. A repercussão nacional e internacional foi e será grande por muito tempo e por vários motivos.

Em que pese significar a exaltação e o reconhecimento do inegável talento brasileiro, o filme “Ainda Estou Aqui”, baseado na história homônima do escritor Marcelo Rubens Paiva, tem implicações políticas importantes. Foi, a partir da exibição internacional da história, brilhantemente contada por Walter Salles, Fernanda Torres, Selton Mello e elenco, que o mundo passou a entender o que se passou no Brasil nos anos 60 e 70, principalmente. A imprensa internacional chegou a questionar incrédula, se era verdade que no Brasil, as Forças Armadas matavam o próprio povo! (Bem, há controvérsias...não dá pra acreditar que não soubessem dos inúmeros golpes de estado impulsionados pelos EUA, por exemplo). Mas, se lá no estrangeiro não havia essa compreensão (SIC), aqui, a esmagadora maioria do brasileiro certamente, agora, já a tem. Até porque, parte da população e das Forças Armadas, novamente, tentaram impor a ditadura militar durante os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, e isso é fartamente discutido por aqui. Só não deu certo, porque alguns militares perceberam a enrascada.

Chega a ser irônico um filme que denuncia a ditadura e ter sido destaque internacional, no mesmo dia em que os atos golpistas de Donald Trump completaria três anos e às vésperas dos atos golpistas patrocinados, ao que tudo indica, por Jair Bolsonaro, completar dois anos. Exatamente por isso, que acredito na função social do cinema. “Ainda Estou Aqui” passa à limpo parte da nossa história. Além do entretenimento, as boas histórias contadas na telona também educam, informam, relembram e denunciam. Enfim, o cinema também faz pensar.

Dessa forma, o Brasil há de prestar mais atenção para o fato de ainda não ter uma “política cultural”, sobretudo no cinema, para enfrentar o streaming, onde grandes conglomerados estrangeiros dominam o mercado de séries, filmes e de distribuição sem pagar impostos ou direitos autorais, o que sufoca de morte o cinema nacional. Há de ter mais incentivos às artes como um todo, mais ao audiovisual brasileiro em particular. “Ainda Estou Aqui” e “O Alto da Compadecida 2”, outro fenômeno de público, são fenômenos de assistência. Juntos somam mais de 5 milhões de espectadores. E com números assim, é evidente que as perspectivas de crescimento são candentes, tanto do ponto de vista da qualidade, quanto da quantidade e isso gera emprego, renda, impostos e, consequentemente, a criação de uma verdadeira indústria cinematográfica. É preciso mais investimentos.

O outro lado, o da extrema-direita, como sempre, esperneia e passa vergonha pela quantidade de besteiras que diz. Um vereador de São Paulo postou em suas redes sociais, antes do anúncio, um escrachado sarro pelo “filme clichê”, como disse, por não ter vencido como “Melhor Filme”. Foi dormir. Acordou com a notícia de que Fernanda Torres havia vencido como “Melhor Atriz, em Filme de Drama”. O obscuro ex-secretário da Cultura bolsonarista Mário Frias, reclamou da premiação e disse que o filme é uma “peça de ficção”. Como assim? A Folha de São Paulo que emprestou suas viaturas para transportar presos políticos e considerava a ditadura como “ditabranda”, ao deparar-se com o prêmio de Fernandinha, passou a classificar o regime militar como “ditadura cruel e sanguinária”. Talvez por medo de perder mais leitores ainda.

Pra concluir, o própria Jair Bolsonaro, após a vitória de Fernanda Torres criticou a gestão federal pelo incentivo cultural e desandou a falar mal da Lei Rouanet. Uma grandessíssima bobagem. Típico de quem não sabe o que é a Lei Rouanet.

A Lei Rouanet, mecanismo de incentivo à cultura, registrou uma captação recorde de recursos em 2024, alcançando quase R$ 3 bilhões. Essa arrecadação consolida o sucesso da legislação que permite que recursos sejam direcionados à cultura com benefícios fiscais.

Os projetos aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura podem captar recursos junto a pessoas físicas e jurídicas, que, em contrapartida, podem abater o valor do Imposto de Renda devido. Essa renúncia fiscal é a principal característica do modelo, que visa fomentar a cultura nacional ao abrir mão de uma parte da arrecadação federal. No entanto, o Ministério da Cultura, por sua vez, monitora o uso desses recursos para garantir que os projetos sejam executados corretamente e sem desvios, exigindo que os proponentes prestem contas dos gastos realizados. E, detalhe, o Filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, não usou um centavo sequer da Lei Rouanet, mas sim, com recursos privados das produtoras VídeoFilmes, RT Featrures e MACT Productions.

Ainda Estou Aqui” conta a história da Eunice Paiva, esposa do ex-deputado federal Rubens Paiva, preso, torturado e morto pela ditadura militar, em 1971. Eunice tornou-se ativista política na sequência da prisão do marido. O assassinato de Paiva nunca foi assumido pelo Exército que, até tentou esconder o fato. Mas, somente com a instauração da Comissão Nacional da Verdade foi possível entender o que aconteceu com o ex-deputado e as circunstâncias da sua morte.