Lançado em 2021, com direção de Jeferson De, o longa-metragem “Doutor Gama” conta a trajetória do advogado e abolicionista negro Luís Gama. O filme se desenvolve em três momentos de sua vida. A infância na Bahia, no século XIX, foi retratada de maneira breve e tem como objetivo esclarecer que Gama nasceu livre e foi vendido pelo próprio pai, que era branco, para sanar dívidas. Na cena em que sua venda acontece, seus sapatos são imediatamente retirados pelos traficantes. Sabe-se que no período da escravidão brasileira usar sapatos era algo exclusivo de sujeitos livres, portanto, uma evidência da escravidão era a ausência desse elemento. Não há detalhes de sua infância como escravo e para onde foi levado especificamente.

Há um salto temporal e vemos Gama jovem. O filme torna-se ainda mais interessante, pois acompanhamos seu processo de alfabetização e aprendizado de novas ideias, como as do Iluminismo. O rapaz aprende a ler e escrever por meio de sua relação com um homem branco que era visitante de seus senhores. Este lhe ajuda a encontrar um documento que certificaria sua liberdade e o ápice desse processo é ver Gama dizendo ao seu senhor que tinha nascido livre, que deveria libertá-lo e partir da propriedade após receber um par de sapatos de outra escrava. 

A fase adulta do personagem é retratada na última parte do filme. Nesse ponto, ele já é um advogado que se torna conhecido por atender escravos e defendê-los em julgamentos. O contexto, em que muitos de seus casos ocorrem, é o da Lei Bill Aberdeen (1845), promulgação inglesa que lhes permitia apreender embarcações que transportassem escravos no oceano Atlântico. Contudo, o momento crucial do longa concentra-se no julgamento de um escravo que assassinara seu senhor, após o abuso físico e sexual de sua esposa. 

Certamente, todo o propósito do filme pode ser visto, a partir dos esforços do abolicionista para construir essa defesa. Na sequência do tribunal, o promotor branco, a todo momento, utiliza de ideias racistas comuns no século XIX que justificavam a escravidão alegando que africanos não conseguiam se desenvolver, que seu aspecto físico era diferente dos brancos e, portanto, feitos para o trabalho. 

Doutor Gama, cumpre seu papel de construir uma narrativa do personagem e de sua relevância no abolicionismo, mas mantém sua humanidade. O roteiro não mostra com detalhes o sofrimento e abusos sofridos pelos escravos no período escravista, mas realiza com clareza as críticas ao período quase de maneira didática, tratando de questões como estupro, marginalização social, racismo, etc. É um filme necessário, não para o mês da consciência negra, mas para uma sociedade que ainda dissemina discursos racistas e promove o massacre aos grupos negros. Contudo, essa historiadora não concluirá esse texto apontando qual foi o veredito do julgamento do escravo defendido por Gama. Com isso, apenas provoco ao leitor que assista esse grande filme, desse grande homem.

Autoria
Aline Ribeiro é Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo e aluna de doutorado pela Universidade de São Paulo. Atualmente, trabalha como professora de História em escolas de Ensino Fundamental II e Médio.
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