Depois da mobilização conjunta dos mandatos e movimentos sociais feministas, a Câmara Municipal adiou, na semana passada, a votação do Projeto de Lei (PL) 813/2019 “Escolhi Esperar”.
Trata-se de um retrocesso na educação sexual com proposta equivocada de abstinência sexual como política pública para enfrentar o problema da gravidez precoce.
O vereador proponente é Rinaldi Digílio, recém filiado ao PSL. Um bolsonarista orgulhoso em suas redes sociais. Como todo falso defensor da família, a sua visão e dos defensores da proposta é de que a sociedade está corrompida pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQIA+ e o sexo banalizado.
Desta forma, crianças e adolescentes acabariam fazendo sexo porque são estimuladas. Para eles, as políticas existentes sobre a sexualidade de adolescentes falham, uma vez que a gravidez precoce ainda ocorre no País.
Eles ignoram a realidade da violência sexual contra crianças e adolescentes. E repetem, sem parar que o projeto não é sobre violência sexual. Não é mesmo, mas deveria ser.
A moral e visão de mundo deles é muito peculiar. Se veem como salvadores de uma juventude “perdida” em baile funk, mas não estão preocupados com o fato de que a cada uma hora, quatros crianças (meninas e meninos) sejam abusadas sexualmente no Brasil. E não se importam em saber que essa violência é uma das causas da gravidez precoce no País.
O abuso sexual e a pedofilia no Brasil são problemas gravíssimos. Os esforços para sua mensuração e enfrentamento estão sempre aquém da realidade, camuflada e casos subnotificados. Ainda assim, há correlação entre os abusos e gravidez na adolescência.
De acordo com o Ministério da Saúde, das notificações de estupro praticados contra crianças e adolescentes, entre 2011 e 2016, 20% resultaram em um ou mais nascidos vivos. Em quase 70% dos casos, o agressor era conhecido ou familiar da criança (entre 10 e 14 anos), enquanto entre adolescentes (15 a 19 anos) eram quase 40% dos casos.
Assim como ignoram dados da realidade, esses setores conservadores negam as evidências científicas sobre a eficácia da abstinência sexual como foco da educação sexual para adolescentes.
A Sociedade Brasileira de Pediatria corrobora a posição da Sociedade de Saúde e Medicina do Adolescente norte-americana sobre a necessidade de se adotar uma abordagem compreensiva da sexualidade adolescente. Ela inclui respeito à diversidade cultural, sexual e de gênero, ao direito de receber informações seguras sobre sexo, sensibilidade de profissionais de saúde e educadores, oportunidades para o conhecimento de métodos de proteção à saúde e prevenção da gravidez.
No âmbito federal, existem três documentos que fornecem diretrizes para o cuidado da saúde sexual de adolescentes e jovens no Brasil - em nenhum a abstinência sexual é adotada como política - todos desconhecidos pelo proponente e pelos apoiadores do projeto.
Além disso, na cidade de São Paulo, dois programas da Secretaria Municipal de Saúde abordam a questão. Mas lamentavelmente não é para aperfeiçoar a política, verificar sua eficácia ou efetividade que eles estão preocupados.
Quem se beneficiará com esta política?
O nome do projeto é uma alusão explícita a uma campanha de origem religiosa promovida por um casal de pastores que tem o propósito de “fortalecer aqueles que escolheram se preservar sexualmente até o casamento e disseminar os princípios eternos nas áreas afetiva e sexual”.
Apesar de negar qualquer relação com a campanha, nas duas audiências públicas realizadas para discutir o projeto, o vereador Digílio convidou para defendê-lo nada menos que um dos consultores científicos da campanha, o senhor Thiago de Melo Costa Pereira.
O projeto de lei prevê que Unidades Básicas de Saúde, escolas públicas ou privadas celebrem parcerias com organizações não governamentais e entidades afins para implementação dos seus objetivos. No site da campanha, a informação é que atualmente 1500 adolescentes são atendidos, mas a meta é chegar em 50.000!
Além de ferir a laicidade do Estado, garantida pelo artigo 19 da Constituição Federal o projeto, de forma ainda mais evidente, fere o artigo 37 que versa sobre a impessoalidade da Administração Pública, como precisamente apontam o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulheres (NUDEM) e o Núcleo Especializada da Infância e Juventude, ambos da Defensoria Pública de São Paulo, em Nota Técnica.
Além desta alusão mais do que explícita a uma campanha promovida por entidade de direito privado, o projeto foi protocolado na Câmara Municipal em 2019. Foi o mesmo ano em que a ministra Damares propôs uma campanha nacional de promoção da abstinência sexual como forma de enfrentar a gravidez na adolescência e a transmissão de IST/HIV.
Para a ministra Damares, ensinar métodos contraceptivos “normaliza o sexo adolescente”, tendo em vista que nem todos iniciaram a vida sexual. De acordo com nota técnica do Ministério da Damares, o sexo na adolescência leva a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé”.
Apesar desses fatos, o projeto deve contar com apoio da maioria dos vereadores. A Câmara Municipal nesse momento reflete exatamente a aliança entre liberais e fundamentalistas que levou ao golpe da presidenta Dilma e a eleição de Bolsonaro.
Não é novidade que a direita tenha incorporado a disputa de pautas morais para atrair atenção de eleitores conservadores nos costumes. Tampouco é recente o uso de moral e dogmas religiosos como diretriz para pautar políticas públicas ou negar direitos em nosso País.
Com aproximação das eleições e aumento da rejeição ao governo Bolsonaro, pela condução do País nessa pandemia, resta a ultradireita bolsonarista apostar todas as fichas nesse discurso difuso e confuso sobre defesa da família contra a desintegração do tecido social.
Com a morte de Bruno Covas, a cidade de São Paulo está nas mãos do ultraconservador, Ricardo Nunes. À época das discussões do Plano Municipal de Educação, ele ocupava a tribuna para falar de “ideologia de gênero” e desintegração da família.
Não à toa, o vereador Digilio manifestou com orgulho ter apoio da Casa Civil para sua proposição.
Mas a tramitação está mobilizando os movimentos feministas, organizações sindicais e partidos, que prometem repetir em frente à Câmara manifestação da semana passada contra o projeto.
* Juliana Cardoso é vereadora (PT), vice-presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de São Paulo e integrante da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança