Muitos são os que dizem que a filosofia não tem muito a contribuir com a atualidade, inclusive pessoas que passaram a vida toda estudando-a. Penso que existem muitas maneiras de se filosofar sobre o que vivenciamos, e a história do “coach do campari” me suscitou as seguintes reflexões.

Um filósofo italiano ainda vivo, Franco Berardi, irá dizer que a humanidade assiste seu fim, em nossos tempos. Como na verdade nos proliferamos cada vez mais, isto soa como uma grande besteira. O filósofo trata, na verdade, do desenvolvimento desde a Grécia Antiga, o “berço do ocidente” (que, diga-se de passagem, nasceu das mães negras egípcias, mas isso é conversa pra outra hora), de um tipo de sensibilidade humanista que, esta sim, se encerrou e deu lugar a outra. Entende o filósofo por sensibilidade a capacidade humana de compreender informações comunicadas de maneira não-verbal por outras pessoas.

Até o profundo processo de virtualização da vida que sofremos hoje, a grande maioria das pessoas precisavam do encontro físico e corporal para se comunicarem entre si, o que possibilitaria essa percepção do que se “fala” com o corpo, sendo este o “instrumento” comunicativo por excelência. Com a alteração disto, se modificou não só a forma de comunicação humana, mas também o que se comunica.

A “vida virtual”, em toda sua pretensão de profundidade, é, na verdade, quase que inteiramente traduzida por um código efetivamente binário e simples, composto pelos caracteres 0 e 1 da linguagem computacional. Já a comunicação corporal, em toda sua aparente simplicidade, é capaz de traduzir os sentimentos mais sublimes e odiosos que a humanidade conheceu até hoje; sem verbalizar qualquer palavra ou exprimir um caractere. Esta é a condição que Berardi chama de sensibilidade humanista, ou seja, essa profundidade comunicativa não-verbal. É por ela que perdemos com a virtualização das nossas vidas. Me parece uma leitura muito competente de como vivemos hoje.

Mas o que muda de fato? Se o corpo comunica afetos, o que comunicam os códigos binários da tela de computador ou celular que o leitor deste texto lê? Em sua pobreza, comunicam o que se espera da sociedade que o incentiva, ou seja, o capitalismo. E aqui entenderemos num sentido político as ideias deste filósofo. O “berço do ocidente” não teve seu fim na formação do regime capitalista, mas sim na proposta socialista de mundo. Nesta, os corpos comunicam solidariedade entre si. Já no capitalismo, a comunicação de uns com os outros, segue sua premissa básica: a competição para ser o vitorioso de uma relação intrinsecamente mercantil. Ou como diria Hobbes e Margaret Thatcher, se comunica que todos os seres humanos competem e vivem em guerra entre si, uma história de poucos vitoriosos e muitos fracassados.

Desta maneira, uma nova sensibilidade que não se funda neste profundo desejo de solidariedade mas de competição, tem como objetivo produzir ferramentas para a vitória do comunicador; é uma busca pelo aumento do seu valor num mundo em que se negocia vidas diariamente.

O que tem isso tudo a ver com o coach da campari? Vejamos: a história contada por este é que, uma mulher, aparentemente ao desejar flertar com ele, lhe ofereceu uma diminuição de seu valor como homem, uma cerveja se comparada ao campari que bebia naquele momento. E sua resposta, violenta, ao flerte daquele outro corpo não foi flertar de volta, nem mesmo exatamente rejeitar aquele avanço, mas antes reafirmar seu próprio valor, como homem, de beber o que deseja e não algo tão simplório como o que foi oferecido pela mulher. A situação patética nos mostra como neste momento, o mais importante a este homem era demonstrar-se vencedor de uma competição de qual sujeito vale mais, ele ou a mulher.

Há também, neste meio masculinista que debate profundamente a maneira com que homens e mulheres devem se portar perante ao outro para fins sexuais – e, para estes homens, sempre se comunica com mulheres com este fim – a ideia de que esta relação é permeada por um “Valor Sexual de Mercado”. Faça uma rápida pesquisa em seu sistema binário de preferência e verá que se trata de uma verdadeira pseudociência com tudo que se tem direito: bibliografia dedicada, cursos, gráficos quantificados e experimentações que comprovam o valor (todo trocadilho é intencional) destes “estudos”. De maneira sucinta, se dirá nesta patacoada direcionada especificamente aos homens que sua vida sexual será mais ativa quanto maior seu valor sexual de mercado em comparação com o valor da mulher. Em outras palavras, terá mais sucesso quanto maior seu campari em relação às cervejas que lhe são oferecidas pela vida. Nem preciso dizer que a garota já veio à tona para afirmar que desistiu do flerte.

Para finalizar, volto ao que dizia antes: a filosofia aqui nos possibilita a compreensão de que toda esta situação demonstra a profunda diferença comunicativa da nossa sociedade, e todos os problemas decorrentes disso. As redes masculinistas são atravessadas por uma comunicação que comunica valores e não afetos. Enxerga em cada passo do homem uma maneira deste reafirmar seu valor para que, mediante o mercado sexual, terminem alguns destes homens como vencedores e levem para casa os espólios; as mulheres. Estas, no entanto, parecem muito mais interessadas em colocar água no chope destes sujeitos ignóbeis.

Autoria
Júlio César Rodrigues da Costa é Mestre em Filosofia pela UNESP, Professor da rede estadual do Estado de São Paulo e colaborador do CCN Notícias.
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