Como professor, fico numa profunda tristeza e insegurança quando esses casos de ataques em escolas surgem. E, desta vez, fico ainda mais alarmado. Na época do ataque em Realengo (2011) ou em Suzano (2019), o efeito foi de terror; me lembro muito bem do segundo, pois já era professor. Ainda que houvessem informações dispersas de possíveis novos ataques, não se concretizaram. Mas desde o último, na semana passada em São Paulo, parece ter realmente causado um efeito em cadeia – claro que ainda estamos no calor do momento, e talvez daqui um tempo se veja isto de outra forma, já que a maioria das ameaças feitas acaba por não se concretizar.

De todo jeito, inicialmente, quando imaginei a escrita de algo sobre, pensava eu se tratar daquele caso isolado do esfaqueamento de uma professora dentro de uma escola na capital do Estado de São Paulo. Pouco mais de uma semana depois, já temos mais dois ataques e muitas outras ameaças. E, quando eu imaginei se tratar de um caso “isolado”, pensei que seria interessante verificar como há, na verdade, um certo padrão nestes ataques, os quais tentarei esboçar aqui ainda. No entanto, não levarei em estes últimos acontecimentos, pois é necessário tempo para compreendê-los nas suas particularidades, e parecem de fato ter suas particularidades.

De começo, já no meu último texto do Coach do Campari, delineio uma profunda transformação comunicativa e de nossa sensibilidade nos conceitos de um filósofo, Franco Berardi. Para retomar em poucas linhas aqui, este dirá que depois da modernidade, nossa sensibilidade e comunicação se transformaram completamente, de abertas e solidárias, para outra que concretiza a ideia mais básica do capitalismo: demarcam a competitividade entre os seres humanos. Se não é a origem de todos os males, penso ser uma ferramenta conceitual muito hábil para vermos nosso mundo.

Ao escrever o texto mencionado, minha companheira me sugeriu escrever algo sobre os incels (celibatários involuntários), tendo em vista que há uma conexão muito grande com o caso do Coach do Campari, de quem defende a teoria do Valor Sexual de Mercado, dentre outras teorias da esfera masculinista. Em resumo, os incels são homens frustrados sexualmente por não conseguir parceiras sexuais, e julgam ser o motivo do seu fracasso o avanço do feminismo e do poder das mulheres de escolher seus parceiros, ao contrário de como era no passado, onde os homens tinham, em sua visão, o poder de tomar as mulheres para si como parceiras ao seu bel-prazer.

A despeito da estranheza, os acontecimentos têm mais em comum do que se pode imaginar. Os jovens de Suzano frequentavam o DogolaChan, um site de difícil acesso sem algum conhecimento mais profundo de internet, em que os frequentadores, em meio à muita pornografia (inclusive ilegal, de pedofilia, necrofilia, zoofilia, etc.), xingam e ameaçam mulheres, encontrando nas suas pequenas conquistas políticas e sociais as fontes de todos os males sob e sobre a Terra. Transfere-se os mesmo problemas às pessoas negras, trans, e de qualquer grupo – mas de longe o foco são as mulheres –  até que sobrem apenas eles: homens brancos, cisgêneros e héteros, que seriam as grandes vítimas injustiçadas da nossa sociedade. Não sugiro ao leitor que busque encontrar o DogolaChan e seus “filhos” por aí, será uma leitura indigesta.

Também nos EUA, onde as mortes violentas em locais públicos são endêmicas, tendo como principal alvo as escolas, há essa mesma relação. O 4chan (que originou e deu a ideia e a forma do DogolaChan) cultua pornografia ilícita, estes casos de violência extrema e o supremacismo branco, frequentado grandemente por incels escondidos pelo véu do anonimato, mesmo que em diversos momentos ensaiem uma concretização de suas ideias para fora da vida digital. Dale Beran, num incrível artigo veiculado pela Folha em 2017 (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/03/1867370-trump-os-nerds-do-4chan-e-a-nova-direita-dos-estados-unidos.shtml), pontua de maneira magnífica a força destes para a eleição de Trump naquele país, e se espreita no horizonte com potencial retorno à presidência estadunidense, apoiado pelos mesmos grupos de então. Tampouco sugiro a busca e leitura do 4chan.

Em meus textos, busco sempre “filosofar” sobre a realidade. Neste caso não será diferente; além do já dito anteriormente sobre a transformação que sofre a humanidade, vejo que existem mais possibilidades de pensarmos isso. Novamente citando Berardi – que possui um livro todo dedicado a analisar os assassinatos massivos, Heroes: mass murder and suicide (Heróis: assassinatos em massa e suicídio, em tradução livre), infelizmente ainda sem tradução para o português, podemos notar que não só a comunicação de palavras, símbolos, sentimentos, etc., se tornaram uma maneira de produzir valor, mas a própria troca financeira é, na verdade, uma troca “simbólica” hoje, que perdeu sua realidade.

Penso que o maior exemplo disto pode se encontrar no Brasil: da última vez que li sobre, há alguns anos, o Tesouro Nacional e o Banco Central faziam emissão monetária no valor do PIB anual em cinco dias. Ou seja, o que se produz materialmente no nosso país em um ano, era “emitido” em símbolo monetário e financeiro a cada cinco dias. Um dos focos dessa emissão monetária é para a venda e distribuição de títulos da dívida pública, que, segundo a lei, pelo menos inicialmente só podem ser negociados com os dealers assim legalmente denominados, sempre bancos e fundos de investimento, inclusive os privados (como o Santander). Não se trata aqui de dizer que o simbólico é oposto e não influi na vida cotidiana, pelo contrário, mas o lastro entre o simbólico e o real que se julga representar vem se perdendo. Isso acontece nas palavras proferidas diariamente para produzir valor para nós na “livre competição” capitalista, e também nas negociatas dos banqueiros de números estratosféricos e irreais que controlam nossa “livre competição” capitalista.

Veja que, mesmo com essa produção insana de “valor”, o número de famílias brasileiras endividadas só cresce, e já crescia antes da pandemia; não há correlação entre esse símbolo, a emissão monetária, que, no fim das contas, é dinheiro, com a vida concreta do povo cada dia mais faminto. Aqui, temos muitos filósofos a citar, mas buscaremos um pouco antigo, Nietzsche. Este, em seu texto Genealogia da Moral, de maneira genial (e muito bem documentada) encontra a origem do sentimento de culpa na relação entre o credor e o devedor. O credor poderia tomar de seu devedor o que julgasse valioso o bastante para amortecer a dívida caso este não tivesse condições de fazê-lo, de seu instrumento de trabalho à sua casa, esposa, filhos, etc., normalizando portanto a punição a um “culpado” por dever algo que não consegue mais honrar. A lei de talião (olho por olho, dentre por dente), tido como primórdio dos códigos criminais, é a tentativa de equiparar qual o tamanho da dívida e da culpa do devedor/criminoso perante o credor/justo. Há também um ótimo texto publicado no The Intercept Brasil em 2019 (https://theintercept.com/2019/12/24/sofrimento-financeiro-bancos-boletos/), escrito por Rosana Pinheiro-Machado, sobre esta temática.

Os assassinos em questão buscam sempre culpabilizar suas vítimas, as quais lhe devem, no limite com a vida, pelo mal causado. De bullying a recusa sexual, estes homens (e os assassinos em massa são majoritariamente homens brancos, cisgêneros e héteros) se veem como vítimas numa transação em que não foram recompensados devidamente. Dirão que no passado foram “eles” os líderes, os construtores dessa realidade agora destruída pelas mulheres, pelos negros, pelos LGBTs e todos os demais devedores históricos aos homens brancos. São portanto os “credores” e justos desta realidade, mas não se sentem recompensados pois lhes falta os haréns prometidos, a riqueza material e o status social superior; todos e todas são culpados por serem negados a entrar no paraíso, e, portanto, devem pagar sua dívida. Deve ser feita a “justiça”.

Para finalizar, devo dizer que vejo, de maneira negativa, todo o debate entorno da culpabilização do indivíduo A ou B nestes atos. Não são os filhos dos banqueiros, dos grandes capitalistas, dos políticos enriquecidos através de seu exercício representativo, etc., que cometem estes crimes. Estes são devidamente recompensados, sentem-se justiçados do alto de seus arranha-céus em Dubai. No entanto é por conta de seus pais e do sistema injusto de enriquecimento que lhes proporciona tudo que isso acontece. A bomba estoura aqui, mas é armada lá.

Autoria
Júlio César Rodrigues da Costa é Mestre em Filosofia pela UNESP, Professor da rede estadual do Estado de São Paulo e colaborador do CCN Notícias.
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