O Oscar 2025 jamais será esquecido pelos brasileiros. Uma noite histórica, em que o cinema nacional finalmente conquistou o reconhecimento máximo da Academia, com a estatueta de Melhor Filme Internacional! A emoção tomou conta do país, que vibrou com a vitória e celebrou o talento dos nossos artistas.
Essa conquista, além de coroar o trabalho de toda uma equipe, representa um marco para a nossa cultura. "Central do Brasil", de Walter Salles, já havia concorrido em 1999 e abriu caminho para que, 26 anos depois, o Brasil subisse ao palco e fizesse história.
Mas a noite não foi só de alegria para os amantes da sétima arte, pois a beleza do cinema reside em sua capacidade de evocar múltiplas interpretações, cada uma moldada pela subjetividade do espectador. Algumas obras, dotadas de genialidade, transcendem a mera narrativa e se transformam em catalisadores de debates acalorados, ora recebendo afagos, ora sendo alvo de críticas contundentes.
"Emilia Pérez" é um exemplo emblemático dessa dualidade, oscilando entre a aclamação inicial e a desidratação após um turbilhão de controvérsias. De suas 13 indicações, recorde para um filme não falado em inglês, levou apenas duas: Melhor Atriz Coadjuvante, para Zoe Saldaña, e Melhor Canção Original, para El Mal. Em nossa sociedade contemporânea, marcada pela superficialidade e pela influência das redes sociais, o "cancelamento" se tornou uma arma poderosa, capaz de dizimar reputações e carreiras em um piscar de olhos.
A atriz transgênero Karla Sofía Gascón, quebrando barreiras ao ser indicada ao Oscar, viu sua atuação elogiada ser ofuscada por declarações e postagens antigas, desenterradas e transformadas em munição para linchamentos virtuais. A questão que se coloca é: essa mesma reação ocorreria se a atriz fosse um homem? Ou uma mulher cisgênero? Quantas vezes, em momentos de impulsividade, proferimos ou pensamos coisas que, se expostas ao escrutínio público, nos colocariam em uma posição desconfortável? A diferença crucial reside na amplificação proporcionada pela internet, onde um "pensar alto" pode ser reverberado para bilhões de pessoas, expondo-nos a julgamentos sumários e implacáveis.
O filme e seu diretor também não escaparam da fúria da multidão virtual. Críticas ácidas e, por vezes, gratuitas, foram direcionadas à produção, abrangendo, desde as atrizes coadjuvantes, até a língua espanhola, os cenários e os números musicais. Curiosamente, alguns analistas que inicialmente teceram elogios ao filme, posteriormente, se viram compelidos a retificar suas opiniões, demonstrando como o medo do "cancelamento" pode influenciar, até mesmo, os mais renomados críticos.
A película trata-se de uma obra de beleza e criatividade ímpares, que desafia convenções ao mesclar gêneros de forma inovadora. O thriller de crime se entrelaça com o musical, criando uma experiência narrativa única. As canções, longe de serem meros interlúdios, aprofundam a trama,revelam nuances dos personagens e abordam temas complexos com sensibilidade e inteligência. A atuação de Karla Sofía Gascón é um tour de force. A atriz,que se identifica como mulher trans na vida real, entrega uma performance visceral e corajosa, despindo-se de sua feminilidade para viver um personagem masculino. Essa entrega física e emocional é de uma magnitude que nos faz refletir sobre os diversos papeis de mulheres que se desconstruíram de sua beleza e conseguiram ganhar o Oscar de melhor atriz.
Zöe Saldaña e Selena Gomez também brilham em seus papeis, demonstrando versatilidade e talento. A primeira, com uma técnica impecável e, a segunda, com sua capacidade de expressar a brutalidade por trás de uma fachada angelical, enriquecem a narrativa e conferem profundidade à trama.
"Emilia Perez" é, em suma, uma experiência audiovisual inesquecível, que funciona em múltiplas camadas. É um thriller de crime envolvente, um musical inovador, um drama pungente, uma crítica social pertinente e uma plataforma para três atrizes se reinventarem.
O diretor Jacques Audiard, com sua visão singular, nos presenteia com uma obra que reafirma o poder disruptivo da sétima arte, capaz de nos fascinar, emocionar e provocar reflexões profundas sobre a sociedade em que vivemos. Uma obra que deveria ser celebrada e não esquecida.