Recentemente o cantor e compositor Chico César provocou polêmica nas redes sociais ao responder de forma surpreendente a um fã que pediu que ele evitasse as canções de “cunho político-ideológico”: “Tu és muito maior que eles todos. Tu não deves nada a eles. Eles que te devem. Tuas mãos são limpas. Não as coloque no fogo por nenhum deles”.

O ouvinte reavivava, talvez sem perceber, uma velha polêmica no meio artístico que rebrotou após a Revolução Soviética e se ramificou por todo o século XX. As obras militantes de poetas como Maiakovski, de cineastas como Eisentein, e inúmeros escritores, dramaturgos e artistas plásticos em todo o mundo, que de alguma forma se identificavam com o sonho comunista, provocaram uma reação conservadora, que buscou de várias formas classificar a arte engajada como algo menor, uma coisa impura, contaminada por ideologia.

Claro que a arte engajada não é uma invenção do século XX. Criticar sistemas políticos, ridicularizar os poderosos e colocar em cena conflitos sociais está na origem do teatro grego, seja em forma de comédia ou tragédia. Para um autor como Benoit Denis (Literatura e Engajamento – De Pascal a Sartre), nem toda literatura que aborde questões sociais é necessariamente engajada, senão quase tudo que foi escrito, de alguma forma, conteria elementos de engajamento político.

Os franceses, aliás, debruçaram-se profundamente sobre o tema no pós-guerra. Com antecessores tão seminais como Émile Zola (J’accuse), é natural que a influência das questões sociais nas artes fosse um dos temas prediletos de autores como Sartre ou Camus (que, aliás, discordavam).

Aqui no Brasil obras engajadas de autores como Jorge Amado ou Graciliano Ramos costumam ser colocadas no mesmo saco pelo pensamento conservador. Críticos mais conscientes, como Antonio Candido, estabelecem outro tipo de juízo, com fundamentos estéticos bem definidos, que apontam porque a obra dita “engajada” de Amado é mais fraca, mas – atenção – não por ser política. No entanto, quase toda a obra do escritor baiano, é atravessada pelo registro das questões sociais, das diferenças de classe, do registro agudo das desigualdades. Como, em outro patamar, faz Graciliano.

O espírito sarcástico de um Lima Barreto pode ser encaixado no rótulo “literatura engajada”, assim como o Quinze, de Rachel de Queiroz, mesmo não sendo obras de propaganda política. Assim como toda a dramaturgia de Plínio Marcos, certa poesia de Drummond e Vinicius, o cinema de Glauber Rocha, a pintura de João Câmara. Estão entre os pontos altos da arte brasileira, sem abrirem mão do inconformismo.

Mas voltemos a Chico César. Sua resposta ao fã inconformado merece ser lida na íntegra:

“Por favor, todas as minhas canções são de cunho político-ideológico!! Não me peça um absurdo desse, não me peça para silenciar, não me peça pra morrer calado. Não é por ‘eles’. É por mim, meu espírito pede isso. E está no comando. Respeite, ou saia. Não veja, não escute. Não tente controlar o vento. Não pense que a fúria da luta contra as opressões pode ser controlada. Eu sou parte dessa fúria. Não sou seu entretenimento, sou o fio da espada da história feito música no pescoço dos fascistas. E dos neutros. Não conte comigo para niná-lo. Não vim botar você pra dormir, aqui estou para acordar os dormentes”.

A resposta do paraibano é um verdadeiro libelo em favor da arte engajada, com alta voltagem poética. Recoloca um debate que andava amortecido na música brasileira desde os anos 60, e que ressurge num contexto político que cada vez mais lembra o período da ditadura. Novamente o país é dirigido por militares, que tentam sufocar a cultura, as artes, e qualquer forma de discurso libertário.  

Num cenário opressor e obscurantista, artistas tendem a reaquecer o discurso crítico, denunciar os desmandos e apontar para caminhos radicais. Se a humanidade vivesse num paraíso idílico, certamente não haveria arte engajada. Protestar para que? (O que não impediria que houvesse arte de alto nível, certamente, mas com temática bem limitada). Costumo lembrar de que no mesmo disco de Chico Buarque, de 1971, há duas obras-primas que serviriam de argumento para progressistas e conservadores: Construção (com o final raivoso de Deus lhe Pague) e Valsinha. Quem é craque sabe jogar em várias posições!

Este sentimento de indignação, de inconformismo, não se limita à música popular. Voltando à literatura e ao nosso século, em livro lançado no final do ano passado, (Alguém Vai Ter que Pagar Por Isso, Ed. Faria e Silva, 2020), o escritor Luís Pimentel monta um romance fragmentado, com elementos de crônica e ficção, onde remonta a tragédia da violência policial-miliciana carioca. Enfocando a camada mais espezinhada da população, Pimentel traça pequenos retratos de gente destinada à miséria e ao anonimato, resgatadas aqui pela arte. Ora remete a João Antônio, ora a Rubem Fonseca (não será o título uma lembrança d’O Cobrador?), mas com dicção própria, onde a contundência documental de certos episódios não diminui o alcance poético-ficcional de outros. E muitas vezes estas visões estão mescladas, como ocorre nas obras dos grandes mestres.

Escritor prolífico, com obras publicadas em diversos gêneros (contos, poesia, crônica, infanto-juvenil), Pimentel incorpora nessa obra o espírito de indignação criativa de Chico César. Promove uma bem urdida mistura de engajamento crítico, literatura de denúncia e ficção consciente, pero sin perder la ternura jamás. Um grande pequeno livro (118 páginas), destinado a ser referência de uma época prenhe de injustiças, onde, apesar de tudo, a beleza ainda não foi erradicada.

*Daniel Brazil é roteirista, diretor de TV e colaborador do CCN Notícias. Escreve regularmente para os sites "Revista Música Brasileira", "A Terra é Redonda" e alimenta seu blog "Fósforo", sobre literatura.