O novo disco da cantora paulista Ana Lee traz um conjunto de canções saturadas de profunda beleza. A viagem musical proposta é pelas águas, doces ou salgadas, e isso marca toda a experiência da audição, mesmo quando não há referência explícita na letra.
Os músicos e arranjadores são de primeira linha, e traduziram muito bem a musicalidade líquida das melodias. Ora são pontuadas pelos teclados de Lincoln Antonio, ora pelos clarones de Itamar Vidal, sempre bem temperados pelos violões de Bráu Mendonça, Ozias Stafuzza e Lula Gama e o baixo luxuoso de Swami Júnior. Belo time, que contribui também com algumas das composições originais.
Desde a faixa de abertura, Toada (Cássio Gava/ Zeca Baleiro) onde Ana Lee divide os vocais com Baleiro, somos envolvidos pela refinada sonoridade do disco. Bem pontuado pelo violoncelo de Mário Manga, o delicado arranjo acústico dá o tom também da faixa seguinte, Xote da Navegação, dos gigantes Chico Buarque e Dominguinhos. Fagote e clarone acentuam a melancolia da canção.
O celo de Manga volta a brilhar na faixa seguinte, Castelo, de Mario Montault. A percussão de André Magalhães e Ricardo Stuani, presentes em todo o disco, fica mais evidenciada. Na sequência, uma releitura de A Página do Relâmpago Elétrico revigora a conhecida canção de Beto Guedes, com um leve sintetizador sobre base acústica. Mané Silveira contribui com seu sax e com o arranjo feito a quatro mãos com Itamar Vidal.
Uma ciranda de Ozias Stafuzza retoma uma linha cara à cantora, de experimentar novas leituras dos ritmos populares brasileiros. É o caso do Jongo Tradição I, pleno de ecos ancestrais, e do gostoso samba Lagoa Funda. Uma leitura intimista de Meia Noite, de Chico e Edu Lobo, demonstra que revisitar o tesouro da música popular brasileira também pode ser uma viagem contemporânea.
Ana mostra seu lado compositora ao cantar um poema de Emily Dickinson (Loucas Noites), e se sai bem. Versos de Maria Rita Kehl (O Amor É Uma Droga Pesada) são musicados de forma surpreendente por Antonio Herci, com uma construção que remete a ritmos tribais, reforçada pelo arranjo percussivo. E que beleza a canção que dá nome ao CD! Uma joia de Lincoln Antonio e Walter Garcia, de intervalos inesperados e angulosa beleza.
Em Labirinto Azul nenhuma canção se parece com a anterior, os arranjos não se repetem, e a invenção poética está presente disputando os holofotes com o alto nível musical. O conjunto de composições, de arranjos e de interpretações comprova a maturidade artística de Ana Lee. Um grande disco, para iluminar este conturbado ano de 2020.
*Daniel Brazil é roteirista, diretor de TV e colaborador do CNN Notícias. Escreve regularmente para os sites "Revista Música Brasileira", "A Terra é Redonda" e alimenta seu blog "Fósforo", sobre literatura.