No começo do ano, meu primeiro texto pra essa coluna teve como título “Fome de viver”. Bem, estamos no final. De modo geral, se você está vivo creio que seja um bom motivo pra comemorar, ainda que pesem sobre nós os custos dessa sobrevivência, afinal de contas, a fome é cruel.

Por esses dias, saiu análise da “Rede de Observatório da Segurança” e quero trazer aqui alguns dados pra gente pensar o amanhã. Em seis, dos sete estados monitorados, morreram a cada quatro horas uma pessoa negra em ações policiais: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. No geral, isso dá 82,7%. No Maranhão, o estado não relata a cor das vítimas.

Em números por capitais, Recife, Fortaleza e Salvador se destacam, pois todos os mortos eram pessoas negras. A capital baiana teve a maior porcentagem destes dados, sendo considerada a polícia mais letal do nordeste.

Essa análise foi feita a partir de 2020, começo da pandemia.

Talvez, olhar esses números não seja nada de novo sob o sol  e acredito, inclusive, que já não afetem com a ação que deveria. Mas eles são importantes, porque revelam os silêncios e pactos sociais de conivência com a realidade. Inclusive os “não dados” do Maranhão, pois aí está o silêncio como forma de esquecimento e manutenção da estrutura racista entranhada até o talo no nosso país.

Eu olho pra esses números e penso na ignorância menos como uma falta de conhecimento, mas como uma identidade que bravamente é mantida e se mantém, porque algum benefício traz.

Por isso, para o ano que vem, meu desejo é que tenhamos “ignorânça”, no sentido que Manoel de Barros traz em seu livro: é preciso desconhecer a realidade pra conhecê-la. Não necessariamente fazer o novo, mas desautomatizar, desconstruir, aquilo que é normal e comum. Por isso, ele faz tantos acréscimos de prefixo “des” em verbos e substantivos e que tomo aqui como empréstimo.

Desinventar 2022 é perceber que ele será um ano de batalhas pela volta do mínimo. Mas o mínimo no nosso país é viver. Qual é o valor que a vida tem pra que ela seja tão ceifada em nossas terras? É preciso muito desconhecimento, descertezas, e muitas leituras de anuários de segurança pública (rsrs) pra afirmar que, historicamente, o direito à vida não é fundamental no Brasil. Nem em governos mais progressistas.

Escrevo sobre o tema, porque não quero mais escrever. Desinvento esse futuro que nunca chega a terras latinoamericanas, porque queremos viver hoje: eu, você, nós todos. Não amanhã, nem em 2023. Hoje.

E esse é um exercício que exige humildade, coragem, um pouco de incertezas e uma fé na mudança, Desde que, ela venha com um compromisso, interno e externo. Mudança sem compromisso é trocar seis por meia dúzia, sabe?

Se esse futuro não nos cabe, pois não há vida, boas desinvenções em 2022. 

Autoria
Lorrane Rodrigues é educadora e mestra em história cultural. É cocriadora do “Mandei a Acadêmica Chorar”, um podcast sobre educação e comunicação. Atualmente pesquisa sobre violência de Estado na América Latina a partir dos movimentos de mães.
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