A cidade de São Paulo, e mais particularmente, a Zona Norte, poderá sofrer prejuízos financeiros incríveis além da perda urbanística se o acordo entre o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o presidente Jair Bolsonaro for efetivado sobre o Campo de Marte. Quem explica é o arquiteto e urbanista ex-vereador da cidade pelo PT, Nabil Bonduki, em artigo publicado na Folha de São Paulo, neste domingo, 19/12. Leia a íntegra do texto:

É enorme o prejuízo que São Paulo sofrerá se o acordo entre o prefeito Ricardo Nunes e o presidente Jair Bolsonaro sobre o Campo de Marte for efetivado. Prejuízo financeiro e perda urbanística, pois o futuro do desenvolvimento urbano sustentável da cidade ficará comprometido.

Mas esse crime está se concretizando, com o apoio do legislativo e a omissão da sociedade.

Irresponsavelmente, a Câmara Municipal aprovou em 2ª votação (40 votos favoráveis e 14 contrários), o Projeto de Lei do executivo, um verdadeiro cheque em branco de um único artigo, que autoriza o prefeito a fazer qualquer acerto com o governo federal sobre a área desde que a dívida do município com a União, estimada em R$ 25 bilhões, seja considerada paga.

O próprio prefeito revelou que, além de abrir mão de toda a indenização a que o município tiver direito (valor estimado pela Procuradoria Geral do Município em R$ 49 bilhões) que exceder o valor da dívida, o acordo envolve a transferência de 1,8 milhões de metros quadrados da área do Campo de Marte para o governo federal, ficando apenas 400 mil para a prefeitura.

Essa transferência justifica o interesse de Bolsonaro. O Aeroporto de Marte está incluído na 7ª Rodada de Concessão Aeroviária que está em consulta pública pela ANAC, junto com, entre outros, o Aeroporto de Congonhas e Santos Dumont, cujo prazo para apresentação de sugestões, antes de se publicar o edital, esgota-se em 31 de dezembro de 2021.

Por isso Bolsonaro e seu ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas (candidato ao governo de São Paulo) têm tanta pressa na concretização do acordo. Enquanto o imbróglio da posse da área não for resolvido, a concessão não pode se realizar.

O que não se justifica é a pressa do prefeito e do presidente da Câmara, que acelerou a tramitação do projeto de lei, em sacrificar o futuro financeiro e urbanístico do município, para ter um ganho de curto prazo, deixando de pagar R$ 3 bilhões anuais para a União.

O Campo de Marte, ocupado pelo governo federal há 89 anos como um troféu de guerra após a derrota paulista na guerra civil de 1932, foi reconhecido pelo STF como de propriedade do município, depois de tramitar por 63 anos em todas as instâncias do judiciário. O caso está transitado em julgado, restando apenas a decisão final do valor da indenização

O município não deveria ter pressa em resolver a questão da dívida, pois a prefeitura está longe de ter suas finanças estranguladas.

O peso da dívida no orçamento municipal reduziu-se sensivelmente após a renegociação da dívida capitaneada pelo ex-prefeito Fernando Haddad. O valor foi reduzido de R$ 72 bilhões de reais para R$ 28 bilhões, sem que o município entregasse único metro quadrado de seu patrimônio imobiliário. Muito diferente do que está ocorrendo agora.

Os R$ 3 bilhões que a prefeitura paga anualmente como serviço da dívida representam menos de 4% do orçamento aprovado para 2022. No passado, essa porcentagem alcançou 13%. Em outubro de 2021, a prefeitura tinha cerca de R$ 25 bilhões em caixa, sem ter um plano consistente de investimentos para utilizá-los.

O município não é uma viúva endividada que não pode pagar seus compromissos e precisa abrir mão de uma indenização de R$ 49 bilhões e de um valioso patrimônio imobiliário para parar de pagar a dívida imediatamente.

Se, do ponto de vista financeiro, o acordo é nefasto para o município, do ponto de vista urbanístico a perda é desastrosa e irreversível.

O Campo de Marte, com seus 2,2 milhões de metros quadrados em uma região bem servida de infraestrutura e situada a quatro quilômetros do centro, faz parte do subsetor "Arco Tietê" da Macroárea de Estruturação Metropolitana (MEM), prevista no Plano Diretor como um dos elementos estratégicos para o desenvolvimento urbano da cidade.

A MEM, que forma um arco ao longo da orla ferroviária e fluvial dos rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, reúne grandes glebas ociosas, equipamentos públicos e antigas áreas industriais e se constitui uma reserva fundiária, onde a cidade pode crescer para dentro, evitando a expansão horizontal que compromete as áreas de proteção ambiental.

Nela existem glebas e terrenos suficientes para atender a promoção imobiliária, a produção de habitação de interesse social e a implantação de parques e áreas verdes. Sua ocupação deve ser planejada, garantindo um equilíbrio urbanístico e ambiental.

O destino do Campo de Marte deveria estar subordinado a essa perspectiva, no âmbito de um plano urbanístico para a região. O Projeto de Intervenção Urbana do Arco Tietê, enviado ao legislativo na gestão Haddad, foi retirado por Dória em 2017 e nada mais foi proposto.

A cidade não poderia abrir mão de uma área tão estratégica para seu futuro antes de se definir, de modo participativo, esse plano urbanístico. A manutenção ou não do aeroporto deveria estar vinculada a esse debate e, ainda, à formulação do Plano de Infraestrutura Aeroviária, previsto no artigo 262º do Plano Diretor.

A gleba do Campo de Marte, com uma dimensão equivalente a uma vez e meia o Ibirapuera, poderia ser transformar em um grande parque, com equipamentos de cultura e lazer, aumentando a permeabilidade do solo na Várzea do Tietê.

Por outro lado, a eventual saída do aeroporto viabilizaria o desenvolvimento imobiliário e habitacional da Zona Norte, restrito devido ao cone de aproximação das aeronaves. A região hoje se expande criminosamente em direção à Serra da Cantareira, com ocupações de terra em áreas de proteção ambiental.

Nada disso foi levado em conta no debate legislativo, que tratou a questão com uma superficialidade e irresponsabilidade que envergonham a cidade. Não discutiu nem os aspectos financeiros, como o deságio que a prefeitura está concedendo à União, nem as consequências urbanísticas do município abrir mão de uma área que tenta retomar há 63 anos.

A única esperança é investigação que o Tribunal de Conta do Município e o Ministério Público devem fazer sobre esse acordo, que precisa ser barrado na Justiça.