A eleição de Gabriel Boric, no último dia 19, repercutiu na política externa da América do Sul. Primeiro, devido à mudança na balança política do continente, o qual conta agora com mais um governo progressista. Além do mais, uma ferida aberta há mais de 130 anos foi tocada nos últimos dias. Trata-se das negociações entre Chile e Bolívia pelo uso do litoral de Antofagasta (região perdida pelos bolivianos). 

Entre 1879 e 1883, Chile, Bolívia e Peru se envolveram numa guerra que terminou com a perda de territórios pelos dois últimos países. No caso boliviano, o trauma foi maior, pois o país perdeu o seu acesso ao mar. A chamada Guerra do Pacífico suscita debates em torno da "legitimidade" das perdas territoriais e possíveis reparações. Vale lembrar que a crise política boliviana de 2003 teve como estopim a construção de um gasoduto boliviano em Antofagasta e a cobrança de taxas pelo governo chileno para que o mesmo operasse. 

Apesar de ser praticamente impossível uma reparação territorial, nos últimos anos foram firmados uma série de acordos que visaram garantir o uso do litoral norte chileno pela Bolívia a custos "moderados". O futuro governo de Boric garantiu esses dias que está disposto a conversar com seu parceiro, Luis Arce (presidente da Bolívia), para repensar posturas e buscar uma saída que não prejudique os lados. 

Trata-se de uma demonstração de "boa-vontade" que sinaliza para a possibilidade de reconstrução de um bloco político significativo para a América do Sul. A mudança no jogo de forças sinaliza para a retomada de projetos barrados pelo ascenso de neoliberais nos últimos anos. Contudo, há que se tomar cuidado para não idealizar aquilo que pode surgir, pois ainda é muito recente a eleição de Boric e a euforia do fato ainda impera em nossas consciências. Podemos ter um rearranjo nos acordos do Pacífico? Sim, mas tudo depende de como as coisas caminharem nos próximos anos. 

O que devemos ter certo é que há sim uma mudança de orientação política no continente, mas que ela não é algo dado, mas possível neste momento. Também, que independentemente de a Guerra do Pacífico aparecer ou não nas motivações para a revisão de acordos bilaterais, ela segue ali, escondida, dando o tom das conversas, independente de quem esteja no poder, seja no Chile ou na Bolívia. O passado segue presente e por isso deve ser discutido. 

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Autoria
Roger Camacho - Doutor em História pela UFRGS, mestre pela UNIFESP. Professor na rede pública estadual e interessado em temas como gênero, Trajetórias de vida, branquitudes, memória e patrimônio.
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