Ainda me lembro bem, quando o garotinho chegou ofegante pela rua de paralelepípedos, a gritar pelos pulmões em alto e bom tom, para que a mensagem ficasse clara como o céu que cobria a pequena cidade do interior paraense: Padre Moacir acordou! Padre Moacir acordou! Creio em Deus Pai, Padre Moacir se levantou do túmulo, minha gente! Ouçam, ouçam, Padre Moacir venceu a morte e abraçou a vida!

É claro que o tumulto na vila foi enorme. Absolutamente, todos os cento e cinquenta e cinco cidadãos ­– homens, mulheres, crianças, velhos e bebês carregados ­– preencheram de supetão a frente da pequenina igreja. Os boatos espalhados eram de que o ressuscitado Padre Moacir havia se trancafiado na sala-depósito, ao lado do altar.

Bem, retrocedamos, pois carecemos de contexto: o coroinha José Apoena jurou de pés juntos, quando sua mãe o pegou pelas orelhas para lhe passar o santo ensinamento de que não deve contar mentiras – ainda mais de volume tão exorbitante e estrondoso quanto aquele, que envolvia a ressurreição (valha-me, Deus!) de um sacerdote deste século – José jurou de pés juntos que o sublime Padre Moacir havia levantado de seu caixão como quem abre a porta de casa no raiar do dia; tapou o sol com a mão, olhou para um lado e para o outro, bateu a terra que sujava seu terno e gargalhou. Gargalhou! Ai, quantas palmadas o coitado do Zé Poena tomou, caro leitor, diante deste último ponto em seu juro sagrado! O coração da mãe engasgava-lhe o pescoço, e ela engoliu-o de volta para o peito, não sem antes descer a lenha no moleque que continuava a jurar a travessa história de horror. Ora, um padre que volta à vida e, contra todo o roteiro que se esperara de um homem que conhece a morte apenas para dizê-la “adeus”, tem como primeira reação desperta o gargalhar? Certamente era uma bela forma de se evitar o tédio de um garoto de onze anos numa cidade quente interiorana. Bem, assim seria, não fosse Bonifácio, o faz-tudo do cemitério, ter aparecido ofegante a correr pela rua a gritar, como o moleque: Padre Moacir vive! Padre Moacir vive! Corre para a igreja, minha gente, que o homem levantou do caixão às gargalhadas!

Prossigamos, portanto. Ainda me lembro bem quando, em frente à igreja, os dois policiais da cidade pediam calma a todos, pois que ninguém podia entrar na igreja com aquele alvoroço, e, além do mais, o homem havia se trancado no depósito da igreja e não queria falar com ninguém. Dona Graça era a única lá dentro, além de dois coroinhas e um membro da Arquidiocese da região, um homem loiro e baixo, que havia chegado para preparar a substituição do falecido Moacir.

Nada sabíamos, até que Dona Graça veio até a porta da igreja e notificou a todos que a notícia era verdade, Padre Moacir voltara dos mortos. Dentre alguns desmaiados, outros boquiabertos, uns chorosos e outros em princípios de ataque cardíaco, houve os que quiseram saber mais. E a pobre Dona Graça não conseguia conter toda aquela multidão escandalosa. Então, combinaram de que ela acolheria algumas perguntas e as levaria até o ressuscitado, ainda que garantisse que o homem não respondia a ninguém, e muito menos abria a porta. Alguém gritou “arrombemos a porta!”, mas o membro da Arquidiocese surgiu por de trás da senhora devota, comunicando que conseguira arrancar algumas palavras do homem: transmitia a todos estar vivo e que bem, mas que lhe aprazia ficar só, pois tinha medo.

Aproveitaram da repentina boa vontade do padre para levarem-lhe as perguntas de todos. Lá foram Dona Graça e o membro do clero, com os papeis escritos pelas mãos dos coroinhas, a tentar compreender o acontecido e aproveitar do privilégio do homem que vivia de novo. Perguntaram-no, de forma vagarosa e clara, “como havia feito para voltar dos mortos?”, “o que havia do outro lado?”, se “havia ele se encontrado com Deus?”, ou se “vislumbrara o inferno, o purgatório, ou fora agraciado de imediato com a bênção do paraíso?”. Outro ainda perguntou se o padre se encontrara com outros padres, como existisse no céu lugar reservado à classe sacerdotal. Todas as perguntas tiveram a mesma resposta: o silêncio. Atônito, o loiro rapaz insistiu que precisavam conversar pessoalmente, e não através de uma porta, mas o padre manteve o silêncio. O coroinha mais velho sugeriu arrombar a porta, mas o membro do clero temeu que algo ruim acontecesse. “E se, num susto, ele morre de novo?”, inquiriu.

Como reinava o silêncio, o homem baixo pediu aos fiéis debaixo do sol das onze da manhã que tivessem paciência com o recém-ressuscitado, pois que deveria ainda estar em choque. Voltou à porta do depósito e interrompeu Dona Graça, que, fiel representante do povo, também perdera a paciência e batia ininterruptamente à porta do esconderijo do padre. O baixo rapaz loiro pediu desculpas pela impaciência da população em geral, e ouviu lá de dentro o padre dizer “nada é certo, e tudo bem”. Estranhado, pediu ao padre que repetisse, mas só obteve o silêncio. Resolveu mudar a pergunta, para não perder aquele tênue momento em que o padre resolveu falar, e o indagou se sentia dor, ao que ele respondeu “finalmente perguntam-me algo sobre a vida!”. Maravilhado, o primeiro continuou, “perdoe-os, Moacir, também são filhos de Deus e temem a morte desconhecida. Então, não sente dor?”, e o padre respondeu, “oras, se estou vivo.”

O rapaz de cabelos claros decidiu não insistir, mesmo sem haver entendido, mas prosseguiu, num ato muito humano e pouco devoto, “então vamos falar sobre a vida. Afinal, encontrou no além um sentido para a vida?”. E a resposta veio como chegara antes, exuberante. Gargalhadas ecoaram na igreja toda; ainda, na cidade toda, em todos os ouvidos atentos do lado de fora, em todas as pedras que antes enfeitavam estagnadas o chão da vila e que se puseram a vibrar, em todos os pássaros que voaram assustados, alarmando os cães e gatos, que fugiram sem rumo, tudo aquilo brandiu como um terremoto de repente atacasse o mundo.

E a poeira daquele alvoroço ensurdecedor recusava-se a assentar, mesmo que o padre já houvesse cessado suas gargalhadas. Beijos frios nas nucas dos cidadãos contrastavam com o calor que se fazia à medida que o céu ficava mais claro e o meio-dia se aproximava. A calmaria novamente dominou o lugar, pois ninguém se arriscava a falar nada, tal o medo de que as perguntas anteriormente feitas de repente fossem respondidas de forma semelhante. Mas o membro do clero não se deu por vencido, e passados alguns minutos, resolveu tentar retomar o diálogo: Padre, por que ris? E veio a derradeira devolutiva, numa voz calma e alegre, como caísse água de uma fonte serena de paz: “E o que mais se pode fazer?”.

E, novamente, o silêncio. Depois de duas horas desérticas, decidiu-se por arrombar a porta. Na cadeira de madeira voltada para a janela, jazia um terno sujo de terra e suor.

Autoria
Matheus Zucato é mineiro, autor dos livros “Os Dois Fazendeiros” (Autografia, 2018) e “Realidades Rompidas” (Edição do autor, 2021). Participa de antologias de contos e mantém crônicas mensais publicadas em jornais de São Paulo e Minas, desde 2018. Vencedor do I Concurso de Contos de Iguaba Grande (AACLIG, RJ), em 2019. Recebeu menção honrosa no VIII Concurso Literário da Academia Penedense de Letras (APLACC, AL), em 2022 e foi segundo lugar no VII Concurso Literário da Academia Leopoldinense de Letras (ALLA, MG), também em 2022. É colaborador do CCN Notícias.
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