Quero aqui chamar a atenção para um filme que tem passado despercebido do público brasileiro, mesmo tendo sido indicado a três Oscars em 2021 (ator coadjuvante, roteiro adaptado e canção original).

O filme marca a estreia na direção da atriz Regina King (Oscar de coadjuvante em 2019 por Se a Rua Beale Falasse). Impossível deixar de destacar o fato de uma mulher negra, multipremiada como atriz, se lançar como diretora de um filme onde todos os protagonistas são homens. Não foi indicada para melhor direção, num ano marcado pela forte presença de mulheres, mas poderia. O filme é um poderoso relato sobre personagens reais, reunidos num encontro fictício.

Estamos em fevereiro de 1964. Kennedy fora assassinado em novembro de 63. Os EUA vivem uma forte onda de lutas pelos direitos civis, contra a guerra do Vietnã, contra o racismo. Em Miami, o jovem pugilista Cassius Clay derrota Sonny Liston e conquista o título mundial de pesos-pesados. Vários militantes, esportistas e artistas negros estão na cidade para assistir a luta. Entre eles, Malcolm X, que entrara em rota de colisão com o líder da Nação muçulmana norte-americana, Elijah Muhammad; Jim Brown, aclamado jogador de rugby, detentor de vários recordes na temporada e iniciando carreira de ator; e Sam Cooke, destaque da soul music, autor e produtor de sucessos radiofônicos.

O filme é uma adaptação da peça teatral homônima de Kemp Powers, de 2013, que coloca estes quatro personagens num quarto de hotel discutindo política, religião, ideologia e questão racial. O roteiro adaptado, que contou com a colaboração do próprio Powers, alargou os horizontes da peça, criando um eletrizante prólogo onde a luta polariza todas as atenções. Introduz também os outros personagens, contextualizando os dramas pessoais de cada um. Quando nos vemos confinados no quarto de hotel, já temos informações suficientes para pesar cada diálogo, que muitas vezes são agressivos e cortantes.

As estratégias de cada um para se colocar num mundo dominado por brancos, política e economicamente, são bem distintas. Sam Cooke, além de artista talentoso, é um empresário sagaz, e se torna notável dentro do sistema “jogando o jogo”. Seu embate com Malcolm X é emblemático: embora se admirem mutuamente, discordam em quase tudo. Clay, que está prestes a se converter ao islamismo, não é um intelectual, mas tem uma percepção clara de como pode ser útil ao movimento de resgate do orgulho negro. Brown é mais reservado, porém faz observações argutas como, por exemplo, sobre Malcolm X ter a pele mais clara do que a dele (A mãe de Malcolm era filha de uma negra estuprada por um branco).

Mais não vou contar, para não estragar o prazer de assistir um filme inteligente e provocativo. Mas acordei no dia seguinte com uma velha questão que assombra minha mente há algumas décadas:  quando teremos um filme, romance, documentário ou peça teatral sobre a questão negra brasileira desse período? Não sobre protótipos como Zumbi, Chica da Silva ou Pelé, mas sobre o MNU, Movimento Negro Unificado, que surgiu durante a ditadura de 64? Sobre a Frente Negra Brasileira, criada na década de 30? Sobre Abdias do Nascimento, intelectual militante que fundou o Teatro Experimental do Negro? Sobre a grande atriz Ruth de Souza, dona de trajetória única na dramaturgia brasileira? Ou, mesmo que não sejam protagonistas, que pelo menos apareçam no enredo de uma trama como porta-vozes de uma (imensa) minoria. Obviamente me refiro a personagens questionadores, não meramente ilustrativos.

O Cinema Novo, momento de inflexão estética no Brasil, criou vários personagens negros, mas mitificados, idealizados. As interpretações memoráveis de artistas como Antônio Pitanga, Grande Otelo ou Zezé Motta ficam no plano do simbólico, enquanto a fragmentada realidade política do período era representada por personagens majoritariamente brancos. A recente experiência do filme Marighella, de resgatar um personagem negro que combateu a ditadura, esbarra no fato de que a questão racial passa muito ao largo da trama. É um ícone da esquerda branca, que muitas vezes esquece de sua origem negra por parte de mãe, valorizando o pai italiano. Foi um lance de ousadia do diretor Wagner Moura colocar no papel um ator indiscutivelmente negro, Seu Jorge.

Nos anos 90 entrevistei o professor Clóvis Moura, sociólogo com vasta obra sobre a questão racial brasileira. Ele terminou a conversa com a marcante frase “nós, negros, temos de ser a esquerda no Brasil!”, que acabou sendo a fala de encerramento do documentário Além de Trabalhador, Negro, que produzíamos na época.  Hoje, quando o povo vai às ruas em plena pandemia para enfrentar um governo genocida, penso que indígenas, negros, mamelucos, mulatos e imigrantes de todas as nacionalidades deveriam colorir um pouco mais a estética da esquerda branca no Brasil.

Voltando ao Oscar: não há como deixar de aplaudir a magnífica direção da sino-americana Chloé Zhao, por Nomadland, que denuncia um capitalismo sem saídas, no qual muitos não encontram opções dignas para viver. Mas convém prestar atenção em Regina King, que se coloca de forma muito promissora num ano em que as mulheres se destacaram no establishment cinematográfico norte-americano.

Costurando com talento fatos reais e possibilidades ficcionais, King equipara-se ao talento provocativo de um Spike Lee, vocalizando os anseios de uma população que sistematicamente se vê agredida, discriminada e violentada em seus direitos.  Como diz a emblemática canção de Bob Dylan, tocada num momento essencial no filme de King, “How many years can some people exist before they’re allowed to be free?”

 

*Daniel Brazil é roteirista, diretor de TV e colaborador do CCN Notícias. Escreve regularmente para os sites "Revista Música Brasileira", "A Terra é Redonda" e alimenta seu blog "Fósforo", sobre literatura.

Autoria
Daniel Brazil é roteirista, diretor de TV. Escreve regularmente para os sites "Revista Música Brasileira", "A Terra é Redonda" e alimenta seu blog "Fósforo", sobre literatura.
Artigos publicados